Políticas públicas para morador de rua devem ser revistas, diz professor da UFMG André Luiz Dias

Raul Mariano
Publicado em 17/08/2019 às 12:57.Atualizado em 05/09/2021 às 20:02.

Dados do Ministério da Cidadania apontam que o número de moradores de rua em Belo Horizonte já passa de 8 mil. O problema, que atravessa anos e governos de diferentes partidos, está ligado à ausência de medidas estruturantes. “Políticas públicas para essa população, infelizmente, nunca deram voto”, afirma o professor do Departamento de Psicologia da UFMG André Luiz Freitas Dias, também colaborador da Universidade de Barcelona.

Há nove anos ele está na coordenação geral e acadêmica do Programa Polos de Cidadania, iniciativa que, há mais de duas décadas, atua na pesquisa e extensão de temas ligados aos direitos humanos. À frente de uma das principais iniciativas voltadas para o acompanhamento do fenômeno crescente dos sem-teto na capital, o docente afirma que a cidade precisa melhorar as ações voltadas aos desabrigados.

A população de rua de BH está hoje no maior nível já registrado. Como frear esse crescimento? 
O aumento está diretamente relacionado com a falta de políticas públicas estruturantes: moradia, trabalho, renda, educação e saúde. Quando isso é precarizado, a tendência é que o número de pessoas na rua cresça. O último levantamento feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) fala de algo superior a 100 mil pessoas em situação de rua no Brasil. O povo da rua, inclusive, reivindica há muito tempo a inclusão no Censo, pois é muito difícil pensar em políticas públicas sem conhecer direito o fenômeno com o qual estamos lidando. Havia uma sinalização de que isso ia acontecer, mas, agora, estamos caminhando na direção contrária. 

Essa ausência de políticas estruturantes é mais grave no âmbito federal, estadual ou municipal? 
Políticas públicas estruturantes com a população de rua nunca garantiram voto para ninguém. Esse problema de precarização da assistência social, por exemplo, é histórico em Belo Horizonte. Sobre a questão da moradia, não é suficiente a abertura de novas vagas temporárias em abrigos. O governo atual tem se esforçado especialmente para não resolver o problema, mas torná-lo menos aparente, só que nada do que está sendo proposto vai resolver a situação. Agora, nós vivemos uma situação totalmente desfavorável, um retrocesso ímpar da história recente, onde as políticas públicas são continuamente atacadas no âmbito federal e isso reflete muito no âmbito municipal, que é responsável pela implantação das ações. 

Um dos grandes desafios da abordagem à população de rua de BH é acompanhar a vida dos moradores, que se deslocam pela cidade o tempo inteiro. O que é preciso para retirar, efetivamente, uma pessoa da rua?
Toda a política precisa ser feita a partir da descentralização e da ampla participação dos cidadãos. O movimento que tem sido feito em Belo Horizonte é no sentido contrário. Isto é, houve uma certa fragilização das políticas públicas na área da assistência social. 

Mas o trabalho de abordagem feito atualmente não é importante? 
O trabalho da abordagem social é hercúleo, importantíssimo e precisaria ser melhor valorizado. Nós precisamos desenvolver novas estratégias, incluir pessoas para pensar a política pública de forma mais inteligente. Isso demanda melhores tecnologias e metodologias. O trabalho de abordagem em BH sempre foi admirável, mas muito pouco apoiado por parte dos governos em geral. Hoje, o investimento na assistência social deixa muito a desejar. O número de participações nesse governo atual tem sido muito baixo. Estamos em agosto e tivemos pouco trabalho desenvolvido pelo comitê municipal voltado para as populações de rua.

“Sem a participação popular e de quem mora na rua, a probabilidade de uma política pública não vingar é altíssima”

Há exemplos no mundo de políticas para essa população que possam servir de exemplo para Belo Horizonte? 
Em 1984, Los Angeles sediou as Olimpíadas. Quatro anos depois, as ruas estavam tomadas por pessoas em situação de rua. A sociedade fez um movimento para garantia de moradia dessas pessoas. Em alguns países, esse movimento se transformou no chamado housing first, ou seja, moradia em primeiro lugar. É a ideia de que dar um lar às pessoas para ser o carro-chefe de políticas públicas estruturantes. Vários países têm se organizado nessa direção, colocando a moradia como condutora para organização do cuidado com essas populações. 

Mas a PBH tem investido na abertura de novas vagas de acolhimento...
Quando o governo municipal simplesmente se preocupa em ampliar unidades de atendimento temporárias, ele está indo na contramão. Todos os países que têm tido algum avanço nesse ponto construíram isso de maneira conjunta com a população. Nós desconhecemos locais onde isso foi feito à revelia dessas pessoas. Sem a participação popular e de quem mora na rua, a probabilidade de uma política não vingar é altíssima. 

Usar imóveis ociosos no Centro da cidade para moradia popular também já foi cogitado pela PBH. Isso seria uma alternativa válida? 
Para problemas muito complexos, provavelmente a gente vai ter que pensar em medidas diversas e muito bem articuladas. Essa seria uma das ações importantes, sem sombra de dúvida, mas se construída com a população de rua. Não dá para falar que é a única solução, mas não há dúvidas de que é um elemento importante para uma construção mais ampliada. 

A dependência química, principalmente do crack, é uma característica marcante nesse público. Como resolver essa questão? 
Os governos, de forma geral, têm agido na direção de criminalizar ou patologizar a população em situação de rua, muitas vezes para justificar a adoção de medidas como a internação compulsória. Nós temos em BH um excepcional grupo de profissionais na prefeitura, gente de altíssimo gabarito discutindo essas questões. Seria fundamental que as políticas públicas e a própria secretaria fossem estimuladas, juntas com outros setores como a sociedade civil, na construção de metodologias que cuidem melhor dessas pessoas. 

Mas, de forma prática, como isso poderia ser feito? 
As políticas não devem se balizar somente por uma ética da justiça, mas sim por uma ética do cuidado. As pessoas estão precisando cuidar mais das outras. E é viável porque o poder público já tem recursos para isso. Sem dúvida, as drogas são um desafio não apenas para o Brasil, mas para o mundo inteiro. Precisamos encarar de frente o desafio de desenvolver metodologias efetivas nesse caso. Em BH, tem centros de saúde oferecendo trabalhos magníficos e outros prestando um péssimo serviço. 

“As políticas não devem se balizar somente por uma ética da justiça, mas sim por uma ética do cuidado. As pessoas estão precisando cuidar mais das outras”

Nós sabemos que BH tem vários problemas para serem resolvidos, mas o senhor diria que o crescimento da população de rua é o principal? 
Proporcionalmente, a população em situação de rua sempre teve muita dificuldade de conseguir recursos justamente porque, apesar de visivelmente chocar muita gente, o fenômeno é estatisticamente pouco relevante. Por isso é que não temos políticas públicas tão efetivas. O que são 8 mil pessoas na rua diante de uma população de 2,5 milhões de pessoas? Então, a população de rua incomoda porque ela expõe o que a sociedade não quer ver. Uma situação de completa degradação. A prefeitura vem caminhando numa direção de guardar essas pessoas, só que, obviamente, não vai se conseguir aprisionar 8 mil pessoas. A população de rua é um grande reflexo de uma sociedade em crise, de políticas públicas que não se efetivam. Nesse momento de crise que vivemos, a quantidade de pessoas que poderiam estar nas ruas é imenso. 

Então o crescimento do número de desabrigados seria uma consequência de problemas maiores? 
Sim. É um fenômeno mundial, que ocorre em decorrência dos problemas da cidade. E isso acontece todos os dias. É mais comum do que a gente pensa.

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