'Espero servir de inspiração', diz 1ª técnica campeã brasileira no futebol

Estadão Conteúdo
Publicado em 02/10/2019 às 07:41.Atualizado em 05/09/2021 às 22:01.

Primeira mulher campeã como técnica na primeira divisão do Campeonato Brasileiro Feminino, Tatiele Silveira conseguiu, no comando da Ferroviária, parar o embalado Corinthians na decisão e fez história no último domingo. Com sensação de dever cumprido, a gaúcha de 37 anos disse em entrevista ao Estado que pretende que o seu exemplo sirva para encorajar outras mulheres que também lutam por mais espaço no futebol.

"Espero que eu possa servir de inspiração para outras mulheres e treinadoras que trabalham com futebol, para que se sintam encorajadas a mostrar seu trabalho em campo com muita propriedade e qualidade."

Confira essa e outras respostas da técnica:

O que você pode destacar na sua jornada até a conquista do Campeonato Brasileiro?
Destaco a entrega e o comprometimento do grupo junto com as ideias da comissão técnica. Essa foi uma conquista coletiva e cada um foi extremamente importante na construção da trajetória até o título.

A estratégia para a conquista do Brasileirão foi diferente da adotada no Campeonato Paulista? O que mudou na equipe para que os resultados fossem tão diferentes (a Ferroviária foi eliminada nas semifinais com duas goleadas aplicadas pelo Corinthians)?
Utilizamos estratégias diferentes, pois sentimos a necessidade de priorizar uma competição e naquele momento priorizamos o Campeonato Brasileiro por se tratar de uma final e a disputa direta do título. Usamos uma equipe mais mista no Paulista para ajudar a recuperar melhor algumas atletas que achávamos mais importantes estarem descansadas para o Brasileiro. Já vínhamos de um período muito desgastante com diversos jogos em um curto período de tempo.

Ser mulher ajuda no trabalho com uma equipe feminina?
Todo grupo feminino deve ter mulheres em suas comissões técnicas, pois penso que ajudam no dia a dia, não precisam ser especificamente treinadoras, mas em qualquer área de atuação da comissão. Muitas vezes temos melhor entendimento das jogadoras e um feeling para lidar com situações de adversidades que possam surgir.

Qual sua trajetória no futebol?
Sou ex-atleta, joguei no Internacional até os 24 anos, fiz faculdade de Educação Física e então me dediquei à transição de atleta para treinadora. O início foi dentro do clube mesmo. Entre 2009 e 2013 tive um projeto de escolinha feminina no Grêmio e, em 2014, fui trabalhar com futebol nos EUA. Fique lá até 2015. No ano seguinte recebi o convite da CBF para ser assistente técnica da Seleção Feminina Sub-17. Fiquei um ano na seleção e participei do Mundial na Jordânia. Em 2017 fui convidada pelo Internacional para treinar e participar da reformulação do departamento feminino e fique no clube até 2018.

Por que decidiu se tornar técnica?
Sempre fui muito curiosa com meus treinadores, gostava de saber como montavam os treinos, como organizavam cada sessão, quais eram os objetivos. Com isso, cursei Educação Física enquanto jogava. Gostei da ideia de me tornar treinadora e busquei qualificação para isso.

A obrigatoriedade dos times masculinos da Série A do Brasileiro manterem times femininos coloca o futebol feminino em outro patamar?
Eu acredito muito, porque os grandes times têm um poder financeiro grande e olhando os números do futebol feminino eles são muito pequenos perto dos investimentos do futebol masculino. É possível agregar e buscar parceiros específicos para a modalidade, trazer todo o conhecimento que eles já têm do futebol para que nós (futebol feminino) possamos evoluir. Temos uma qualidade técnica muito grande, as meninas sabem jogar, têm talento. Então, nada melhor do que pessoas experientes (do futebol masculino) para ajudar a desenvolver esses talentos. E aí entra nossa experiência no futebol feminino. Esses grandes clubes podem abrir portas para muitas mulheres, muitas pessoas que já trabalham no futebol feminino e que ainda não tiveram oportunidades. Sempre tivemos orçamentos muito justos, com muita ajuda, comprometimento das próprias atletas em jogar sem receber nada, de jogar por amor, e até mesmo pela parceria com os treinadores. Com a obrigatoriedade temos que aproveitar o momento.

Quais outras mudanças que ainda podem ser feitas para ajudar na valorização do futebol feminino?
Comunicação. Basta comunicação das entidades, das confederações com as federações, com o objetivo de saber como elas podem realmente colaborar com os clubes, porque nós queremos jogar, queremos a competição. O que está acontecendo nesses últimos dois anos é fantástico, o que a CBF está fazendo é sensacional. Mas aí tem que agregar com a Federação Paulista que é uma federação que apoia o futebol feminino. Então a comunicação entre elas para conseguir conciliar datas/calendário é essencial.

Como foi sua mudança de Porto Alegre para Araraquara?
Foi um desafio. Quando eu recebi o telefonema da Lorena (coordenadora de futebol feminino da Ferroviária) me convidando para ir para Araraquara, conhecia pouco sobre a cidade, mesmo já tendo ouvido falar sobre ela. Então foi um desafio sair de Porto Alegre que é um grande centro e ir para uma cidade menor. Eu tive aquela conversa interna, familiar, sobre aceitar ou não. Mas é o que eu sempre quis e o Estado de São Paulo é fascinante para o futebol, é onde tudo acontece. São Paulo tem esse poder não só no esporte, mas em outros âmbitos. Então bati o martelo e decidi me mudar para Araraquara. E fui muito bem recebida pela cidade, pelo clube, pelos membros da comissão.

Como é sua rotina?
Eu tinha uma rotina muito intensa em Porto Alegre e hoje me dedico exclusivamente à equipe profissional das "Guerreiras Grenás" (apelido do time feminino da Ferroviária). Eu gosto muito de correr, isso alivia um pouco a ansiedade, sou uma corredora amadora que acha que a qualidade de vida é importante. Eu introduzi na minha rotina a meditação, leio muito e comecei a ler sobre mindfulness e maneiras de melhorar minha tomada de decisão. Então faço meditação uma vez por semana isso foi extremamente importante nessas últimas semanas de intensidade, de pressão. Tenho pessoas maravilhosas em Araraquara, como os membros da comissão técnica que hoje se tornaram minha família, já minha família está longe.

O que você gosta de fazer em casa?
Gosto de cozinhar à noite, de ver receitas, de inventar coisas. Outro dia, meu assistente, o Zequinha, que é nosso analista de desempenho, perguntou se eu gostava de maracujá. Ele tem um pé de maracujá em casa e me sugeriu fazer um suco. Fiz melhor, um mousse de maracujá e levei de sobremesa no almoço. Eu também assisto a muitos jogos de futebol, desde Liga dos Campeões até Série B. Gosto de aprender muito com os treinadores, com outras ideias. Gosto de tomar o meu chimarrão no fim da tarde, é uma coisa que tenho o hábito.

Sua família sempre apoiou seu trabalho no futebol?
Desde o início. Minha mãe tem uma matéria guardada que eu saí como a única menina na escolinha de futebol na época, o que era um absurdo, pois não tinha futebol feminino na época. Aí ela me deu de presente de aniversário entrar na escolinha. Fizemos uma experiência para ver como seria o encontro dos meninos comigo e foi tranquilo.

Qual recado que você dá aos pais que ainda têm receio de deixar as filhas jogarem futebol?
Primeiro eles não devem pensar de cara como profissão. Eles devem pensar em tudo o que o esporte traz para as crianças e adolescentes. Pensar no desenvolvimento motor, social, quantas amigas ela vai fazer, porque aumenta o número de amizades, qualidade de vida. Então primeiro é incentivar sem pensar no lado profissional, mas a partir do momento que se percebe que a criança tem talento, qual o motivo de não procurar uma situação onde ela possa desenvolver aquela qualidade e buscar um clube, um treinamento específico?

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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