Com seu estilo pouco afeito a badalações e bravatas, o presidente do Flamengo, Eduardo Bandeira de Mello, vem conseguindo um resultado surpreendente nas finanças do clube. Em apenas dois anos, reduziu as dívidas de R$ 750 milhões para cerca de R$ 570 milhões. Nesta entrevista exclusiva, ele conta como "cortou na carne" para dar oxigênio ao clube e faz também uma análise crítica do debate sobre mudanças no futebol brasileiro.
Agência Estado - Qual o objetivo da comissão de clubes criada recentemente na CBF?
Eduardo Bandeira de Mello - Na verdade, essa comissão já existia desde o ano passado com a finalidade principal de discutir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Neste período, nós não tratamos de nenhum outro assunto. No final de 2014, vários clubes trocaram de presidente, com o fim do mandato, a não reeleição, e também houve queda para a segunda divisão. Por isso, o futuro presidente da CBF, Marco Polo Del Nero (tomará posse em abril), resolveu reavivá-la. Somos oito clubes, mas os que vão participar mesmo não devem chegar a seis, sete. Nesta segunda, vamos ter a nossa primeira reunião de fato (no Rio).
AE - Como está a discussão, dentro da comissão, para que o Campeonato Brasileiro volte a ser disputado no sistema mata-mata?
Eduardo - Esse assunto não foi discutido. Se fizeram isso, não chamaram o Flamengo.
AE - Qual a posição do clube sobre eventual mudança no sistema de disputa do Brasileirão?
Eduardo - Se houver essa discussão, aí vamos reunir a diretoria para ter uma posição oficial. A minha opinião pessoal é pela permanência dos pontos corridos. Mata-mata na Copa do Brasil e pontos corridos no Brasileiro. Dois campeonatos com mata-mata acabam canibalizando um deles. Pontos corridos é mais justo.
AE - Há espaço para os clubes discutirem cotas de TV em conjunto?
Eduardo - A questão das cotas de TV não foi discutida nem vai ser. Não está em pauta. A negociação é feita pelo clube com a TV e valem os interesses da TV. A gente não imagina que esse caminho seja com todo mundo junto. Senão, vamos ter de chamar todos os 680 clubes brasileiros. Aí o Calouros do Acre vai dizer que quer ganhar que nem o Flamengo.
AE - Que avaliação faz da Medida Provisória enviada ao Congresso pela presidente Dilma Rousseff, na quinta-feira, e que trata do refinanciamento da dívida fiscal dos clubes?
Eduardo - Muito positiva. É um ponto de partida para mudanças profundas no futebol brasileiro. Atacou duas urgências: um marco regulatório sério, que exige responsabilidade, uma gestão profissional dos clubes; e o próprio refinanciamento da dívida fiscal num prazo adequado para os clubes se adaptarem. A partir do momento em que você tem um marco zero, todos os clubes vão estar com suas dívidas parceladas em 240 vezes e a partir daí ninguém vai ter desculpa para não pagar o parcelamento e não recolher seus impostos. Então é mais do que justo que a partir daí os dirigentes sejam responsabilizados como pessoa física.
AE - Como deveria ser uma eventual punição a dirigentes?
Eduardo - Nesse ponto, eu concordo com a proposta do Bom Senso Futebol Clube. Eles defendem que seja por um órgão independente, porém com seus custos arcados pela CBF. Seria um conselho de acompanhamento independente que aplicaria as penas. Agora, tem de ser sobre coisas objetivas para evitar que isso vire uma discussão em tribunais. Para mim, a principal medida a ser tomada nessa área é a exigência da certidão negativa de débito, que é uma coisa objetiva, eficiente, que já funciona para você conseguir verbas do setor público há vários anos e não tem possibilidade de ser burlada. Um mês, um mês e meio antes do campeonato, os clubes deveriam apresentar a CND. Se não apresentassem, cairiam imediatamente para a divisão inferior.
AE - É a favor da criação de uma liga de clubes brasileiros?
Eduardo - Isso não está em pauta. Dada a nossa situação de litígio com a federação de futebol do Rio, nós estamos focados em resolver o problema emergencial do futebol carioca. Depois disso, quem sabe podemos pensar em mais alguma coisa? O problema no Rio é muito grave em relação aos outros.
AE - Então estaria em curso um movimento semelhante e restrito ao Rio, com os quatro grandes?
Eduardo - Não sei se com os quatro. O fato é que estamos rompidos com a federação. Estamos disputando o campeonato de 2015 sob protesto, em respeito à torcida, patrocinadores, televisão, imprensa. Tomamos essa decisão desde aquela sexta-feira fatídica (durante conselho arbitral da federação, em janeiro, o presidente da entidade, Rubens Lopes, ofendeu o dirigente rubro-negro, após a leitura de um manifesto assinado por Flamengo e Fluminense, no qual cobravam mudanças no campeonato). Temos de partir para novos caminhos e estamos estudando. Se vai ser uma liga ou outra coisa, ainda não sabemos. Só vai participar quem quiser. No momento, quem estuda isso é Fla e Flu.
AE - Seria para 2016?
Eduardo - Sim. Tem que ser o mais rápido possível. Só não é para 2015 porque não dá tempo. Não dá para conviver mais com algumas coisas. A federação do Rio é a única dos grandes centros de futebol que cobra 10% da receita bruta dos jogos, com mais algumas despesas. As outras cobram 5% com as despesas incluídas.
AE - O que pensa dos Estaduais?
Eduardo - Podem ser melhorados, ficar mais rentáveis. O Carioca é tão ruim que o Paulista é um modelo a ser seguido. O Mineiro também. O Flamengo quando joga no Maracanã leva entre 25% e 30% da receita, enquanto o Cruzeiro no Mineirão leva 70%.
AE - Alguns clubes consideram que o Brasil passa por um processo de "espanholização" de seu futebol, numa alusão a valores que Flamengo e Corinthians recebem da TV. O que acha disso?
Eduardo - Não concordo. O Flamengo sempre foi a maior torcida. Quando não tinha direito de televisão, a receita era de bilheteria. Hoje, a receita de TV é maior, o patrocínio também é maior porque a torcida do Flamengo é maior e nem por isso se está a assistindo à "espanholização" do futebol brasileiro. Há clubes que têm outras vantagens comparativas. O São Paulo, por exemplo, tem um estádio há mais de quatro décadas. Por competência, eles conseguiram fazer um trabalho de base. O do Flamengo se deteriorou. A nossa receita de venda de jogadores é ridícula. Nós nunca tivemos estádio, o nosso centro de treinamento está sendo construído agora e está ainda em uma situação precária em relação ao de outros clubes. Ou seja, eu não estou propondo que ninguém divida seu centro de treinamento nem estádio com o Flamengo. Cada um com suas vantagens.
AE - Como avalia o fair-play trabalhista (aprovado para o Brasileirão de 2015)?
Eduardo - É melhor ter isso que não ter nada. Não sei se inibe o calote, imagino que sim. A medida sinaliza que os clubes estão dando o exemplo e aceitam contrapartida. Em nenhum momento foi dito que essa é a contrapartida técnica que resolve todos os problemas.
AE - De quanto é a atual dívida do Flamengo e em quanto foi amortizada?
Eduardo - Contratamos uma empresa de auditoria internacional (Ernest & Young) para fazer a apuração da nossa dívida. Estava em torno de R$ 750 milhões, em 31/12/2012. No balanço de 2014, que ainda vai ser publicado, deve ficar aproximadamente em R$ 570 milhões.
AE - Como conseguiu essa redução?
Eduardo - Pagando as contas. Se não tinha condição de pagar a conta inteira, pegava um empréstimo, pagava parte e aí ia reduzindo o endividamento. Na nossa primeira semana de Flamengo tivemos de devolver o Vagner Love para o CSKA. Fizemos um ajuste dramático nos esportes olímpicos, com a saída de Cesar Cielo, Diego Hypolito, Daniele Hypolito. O que não significou que o Flamengo não estava dando importância aos esportes olímpicos. Pelo contrário. Hoje, a gente tem o orgulho de dizer que o esporte olímpico, antes totalmente dependente do futebol, e deficitário em R$ 10 milhões por ano, é autossuficiente. Graças às certidões negativas, leis de incentivo ao esporte e outros patrocínios. Não tinha outra saída. Você tem 40 milhões de torcedores e tem de dar exemplo para eles. Havia 13 prestações da Timemania em atraso. Várias parcelas de imposto de renda na fonte não recolhidas, casos claros de apropriação indébita, várias receitas penhoradas. Então a gente tinha de tomar uma atitude para mudar de rumo e adotar uma postura que sinalizasse outros princípios e valores éticos e morais. A gente sabe que bota em campo um time abaixo do que poderia.
AE - Quanto custa o futebol do Flamengo?
Eduardo - A folha do nosso departamento de futebol é de aproximadamente R$ 5 milhões. Nosso orçamento geral de 2014 foi de R$ 320 milhões. Para este ano deve ser de R$ 360 milhões. Em 2016, pela primeira vez, nosso faturamento anual vai ser superior à dívida.