(Rafael Ribeiro/CBF)
Quem menciona o Shakhtar Donetsk em Belo Horizonte tem 99% de chance de receber como resposta: "Bernard". Mas no leste europeu, é outro natural da capital mineira que vem dando as cartas. O meia Fred, que fará 25 anos em maio, é o símbolo da boa fase do time ucraniano.
Revelado no Internacional após recusar o contrato profissional oferecido pelo Atlético, aos 16 anos, Frederico Rodrigues dos Santos já viveu vastas experiências no futebol, até chegar ao momento atual: destaque do time que enfrentará a Roma na Champions League, novamente convocado por Tite e com Guardiola em seus calcanhares para levá-lo ao Man City - especula-se que os ingleses pagariam R$ 200 milhões por ele, dos quais o Galo teria direito a 1,18%.
De Venda Nova, passando por escolinha de Éder Aleixo, até chegar ao Atlético com 10 anos, e depois partir para Porto Alegre "contratado" pelo irmão de Ronaldinho, Roberto Assis, Fred já superou temperaturas negativas, conflitos civis, condenação por doping e até o pouco holofote da Ucrânia para se colocar no mapa. Se em 2014 BH viu um filho ilustre sofrer no 7 a 1 do Mineirão, daqui seis meses terá grandes chances de ver outro representante tentar o Hexa na Rússia.
O Shakhtar tem a chance de chegar às quartas de final da Champions League pela segunda vez na história. É o seu o melhor momento no clube?
Graças a Deus, o momento é muito bom. Temos um grupo muito forte e unido. Já estou na minha quinta temporada vestindo a camisa do Shakhtar e me orgulho de estar conseguindo fazer uma história bonita aqui, com muitos títulos. Desde 2013, acho que esse é o elenco mais coeso. Estamos na liderança do Campeonato Ucraniano e conseguimos fazer um bom papel na fase de grupos da Champions, num grupo que tinha Manchester City e Napoli. Nosso foco agora é a Roma (oitavas de final), treinando forte para chegar à partida do dia 21 de fevereiro no melhor nível técnico, tático e físico possível.
Um reflexo das suas boas atuações é o interesse do técnico Pep Guardiola em te levar para o Manchester City. Já houve algum contato?
Prefiro deixar esse assunto para os meus representantes. O que soube até o momento é o que saiu na imprensa. Fiquei muito feliz, por terem sido elogios de um treinador dos mais qualificados e respeitados hoje no mundo do futebol. Sinal de que o meu desempenho tem sido satisfatório. Mas procuro me manter tranquilo e focado no Shakhtar. Realmente, fizemos uma grande partida contra o City pela Champions, derrubando uma invencibilidade deles que já durava mais de 30 jogos. O professor Tite estava no estádio, isso teve um peso ainda maior para os brasileiros que estavam em campo.
Ainda sobre o Shakhtar, vocês seguem "exilados"? Como é ter de jogar fora de casa sempre devido aos conflitos em Donetsk? A guerra civil da Ucrânia preocupa vocês?
O pior já passou. Foi bem complicado no início, mal pudemos voltar para casa, para pegar as nossas coisas. O próprio clube providenciou isso. Havia a preocupação das nossas famílias, de longe, querendo saber o que estava acontecendo. Todos tivemos que nos mudar para Kiev, a torcida também teve que se adaptar a isso, porque passamos a jogar em um outro estádio. Mas já nos acostumamos à nova casa e a vida seguiu o seu rumo.
A final da Champions será em Kiev. É uma motivação a mais para vocês alcançarem uma decisão inédita?
Seria perfeito. Desde que saiu o anúncio sobre a cidade-sede da final, isso foi muito comentado no clube e na Ucrânia, com todos já imaginando como seria se o Shakhtar chegasse a uma decisão inédita justamente no próprio país. Sabemos das dificuldades, pela qualidade dos times envolvidos, mas vamos brigar de igual pra igual.
Quando se no Shakhtar em Belo Horizonte, o nome que vem à cabeça é o de Bernard. Mas você também é cria do futebol mineiro. Como foram seus primeiros passos no Atlético?
O Bernard esteve naquele que pode ter sido o Galo mais vitorioso de todos os tempos, né?! Eu estive por quase seis anos nas categorias de base do clube, mas saí antes de chegar ao profissional, então é natural que muita gente não me conheça direito. Cheguei ao clube muito novo. Era o primeiro ano da categoria Sub-10, e o Galo buscou muitos garotos que jogavam comigo na Liga Mineira, a escolinha do Éder Aleixo. Antes, eu jogava em uma escolinha na região de Venda Nova e era treinado pelo Fabinho (hoje no Sub-15 do Cruzeiro). Joguei também pelo Colégio Magnum, onde tive o prazer de trabalhar com o Enderson Moreira (técnico do América). Depois de algum tempo, tive que escolher entre o futsal e o campo devido à carga horária de treino e escola, mas minha paixão sempre foi o campo. Fui muito feliz enquanto estive no Atlético, tínhamos um timaço.
Na base do Atlético, você chegou a ser usado como lateral. Como foi sua passagem pelo Galo?
Eu era muito escalado na lateral esquerda, e em jogos mais difíceis era deslocado para o meio, onde sempre me senti mais à vontade. Como eu era um dos poucos canhotos, a esquerda sempre sobrava pra mim. Se precisar, jogo lá também. O que não gosto é de não jogar (risos). No Atlético, chegava a jogar nas categorias acima da minha, aí eu atuava mais na lateral mesmo. Na época, o Eron estava em uma fase ótima e pegava Seleção direto. Então ele tinha muita moral, e eu cheguei a ficar no banco nas partidas que fiz na categoria de cima. Mas voltava cheio de moral dizendo “joguei na de cima” (risos).Stanislas Vedmid/AFPMeia se destacou em vitória por 2 a 1 sobre o City e chamou a atenção do técnico Pep Guardiola
Você deixou o clube em 2010 levado pelo Assis (irmão de Ronaldinho Gaúcho) para Porto Alegre. O Atlético tentou ficar com você?
Eu tinha 15 para 16 anos, já numa condição estável no time. Meu pai tentou fazer o meu primeiro contrato com o clube, mas a diretoria do Atlético, na época, não fez uma proposta que agradasse. Ele tentou melhorar, mas não teve sucesso. Tive propostas de outros clubes do Brasil, mas a vida no Rio Grande do Sul foi a escolha do meu pai, acho que pela similaridade cultural do povo com os mineiros, não tenho certeza. Fui para lá com a minha mãe, que sempre está comigo em qualquer situação. Foram anos difíceis, tivemos que recomeçar, e foi muito cedo para mim. Tive que amadurecer muito rápido. E só foi possível porque minha mãe estava lá comigo. Se hoje posso colher algo de positivo, é porque ela sempre esteve e está comigo. Também foi difícil para ela, teve que pedir demissão de um emprego que estava há mais de 20 anos, imagina só! Mas agora é só alegria.
Se um dia você tiver a chance de retornar ao futebol brasileiro, daria prioridade ao Inter? Retornar ao Atlético passa pela sua cabeça?
Não digo que o Inter seria uma prioridade, mas é um clube pelo qual tenho um carinho enorme, onde fiz grandes amigos. Sempre que vou ao Brasil de férias, faço questão de ir a Porto Alegre. Foi praticamente o clube que me projetou no futebol, sempre fui muito feliz lá. Minha admiração e respeito pelo Atlético também são muito grandes. Foi onde dei meus primeiros passos, na cidade onde nasci. Só fui para o Inter aos 16 anos, então os dois clubes estão no meu coração.
O ex-volante Gilberto Silva é hoje uma figura importante na sua carreira? Ele faz papel de empresário? Conselheiro? Qual a relação entre vocês?
O Gilberto é um cara sensacional. Foi um dos grandes jogadores da sua época, brilhando no Brasil e no exterior, e hoje continua a sua história fora das quatro linhas, com a mesma competência. Desde o ano passado, ele faz parte do staff dos meus representantes, aqueles que cuidam da minha carreira. É um amigo da família e uma pessoa de um caráter exemplar.
No Shakhtar, você foi treinado por Mircea Lucescu, uma figura que adora jogadores brasileiros, mas que não se deu bem com o Bernard. Como foi o convívio com ele? Era um estilo diferente do português Paulo Fonseca?
O Lucescu foi um dos responsáveis diretos pelo alto número de brasileiros na história recente do Shakhtar. Ele sempre foi um fã do nosso futebol e gosta da maneira como jogamos. Nunca tive problema com ele, muito pelo contrário. Ele sempre me deu muita força e ajudou a desenvolver o meu futebol aqui na Europa. O Paulo é outro treinador de muita qualidade e grande pessoa, apesar de o estilo de jogo ser diferente. São de escolas de futebol distintas, o que acho fantástico. É o primeiro trabalho dele fora de Portugal. Tenho aprendido muito com ele também.
Você foi penalizado por doping em 2015. Foi o momento mais turbulento da sua carreira?
Com certeza, foi o momento mais difícil da minha carreira e da minha vida. Fui pego de surpresa. Jamais tomaria nada que me prejudicasse ou fizesse com que eu tirasse vantagem em alguma coisa. Sempre fui uma pessoa muito correta e regrada. Acabei ficando proibido de jogar por mais de um ano. Mas tudo isso ficou no passado. O que importa é o presente e o que o futuro pode me oferecer. Graças a Deus voltei a ter uma nova chance na Seleção e, quem sabe, outras oportunidades podem aparecer.
Por conta de um veto do Shakhtar, você acabou não sendo levado pelo Rogério Micale para a Olímpiada de 2016, quando o Brasil ganhou o ouro. Qual foi o sentimento?
Se dependesse apenas de mim, é claro que gostaria de ter defendido o meu país na Olimpíada, ainda mais dentro da nossa casa. Mas respeitei e até entendi a decisão do clube, com o qual tenho contrato. Eles também precisavam contar comigo naquele momento. Mas só o fato de ter sido lembrado pelo Micale e estar naquele início de trabalho me deixou muito feliz, ainda mais depois de tudo que eu tinha passado em 2015.
Você voltou a ser convocado no ano passado, pelo Tite, para os dois últimos jogos das Eliminatórias. Acredita que estará na Copa da Rússia?
Fiquei feliz demais de voltar a ser convocado para a Seleção principal, e por um técnico que admiro muito. Mostra que estou no caminho certo no clube, fazendo o meu melhor. É difícil dizer se estarei na Rússia ou não. A única certeza é que continuarei trabalhando e me dedicando nos treinos e nos jogos para estar bem preparado caso a oportunidade surja. O Brasil tem grandes jogadores, de muita qualidade, e a briga por um espaço sempre será enorme. Se quero defender o meu país numa Copa? É claro que quero! Mas terei que fazer por onde para merecer. Todos temos chance até a divulgação da lista final.