Testemunha ocular da história

Mamede Filho - Hoje em Dia
08/06/2014 às 10:14.
Atualizado em 18/11/2021 às 02:55
 (Arquivo Hoje em Dia)

(Arquivo Hoje em Dia)

O futebol não pode ser resumido a um evento que acontece dentro de quatro linhas por cerca de uma hora e meia. É uma expressão cultural, uma batalha moderna, uma maneira de construir e mudar a história, de eternizar momentos distintos da sociedade. Nas 19 edições já disputadas, a Copa do Mundo viu países nascerem, se unirem, se separarem e até acabarem. Viu inimigos e ideologias opostas ficarem frente a frente, brigando por cada espaço em campo, mas trocando camisas após o apito final. E serviu como um dos mais completos registros da sociedade moderna.

Um torcedor nascido há meio século no leste europeu muito provavelmente torceu para mais de uma seleção, ao longo dos anos, no maior torneio do futebol mundial. Não que ele faça parte do condenável grupo dos vira-folhas. Ele foi forçado a se atualizar com o passar dos tempos, conforme a geopolítica local assim exigia.

Quando a Croácia subir ao gramado do Itaquerão, na próxima quinta-feira, diante do Brasil, na abertura da Copa do Mundo de 2014, um torcedor de meia idade da equipe europeia pode estar vestindo com orgulho sua camisa quadriculada em vermelho e branco.

Mas nem sempre foi assim. Apenas 24 anos antes, ele estaria de azul, nas arquibancadas da Itália, soltando a voz para empurrar a Iugoslávia no sonho de conquistar o mundo. Do combinado iugoslavo surgiram seis das seleções que fazem parte hoje dos quadros da Uefa: Sérvia, Bósnia e Herzegovina, Eslovênia, Montenegro, Macedônia e Croácia.

Os montenegrinos foram os que mais “viraram a casaca”. Em 1962, viram sua Iugoslávia chegar à semifinal no Chile. Em 2006, na Alemanha, se decepcionaram com a queda ainda na fase de grupos de Sérvia e Montenegro. Agora, independentes, amargam a dura realidade de nunca terem “disputado” uma Copa do Mundo.

Iguais e opostos

As disputas políticas já colocaram até um mesmo país em lados opostos numa partida de Copa do Mundo. Anfitriã em 1974, a Alemanha dividida se enfrentou no último jogo da fase de grupos. O lado ocidental, que recebia o torneio e viria a conquistar o título, acabou derrotado pelo oriental, por 1 a 0.

A partida, disputada em Hamburgo, foi cercada pela tensão que envolvia a Guerra Fria. Mas terminou com uma troca de camisas entre os dois lados. Secreta, para não irritar os governantes de ambos os países.

As disputas entre seleções de países em conflitos diplomáticos não são raras em Mundiais. A própria Alemanha, em 1974, venceu a Polônia, por 1 a 0, na decisão por uma vaga na grande final. Fora de campo, ainda estava viva na memória o sofrimento dos poloneses durante a ocupação na Segunda Guerra Mundial.

Na Copa do Mundo do México, em 1986, saiu do futebol a “vingança” por um sangrento conflito. Quatro anos depois de ser massacrada pela Inglaterra na Guerra das Malvinas, a Argentina de Diego Maradona buscou a classificação às semifinais, eliminando o novo “inimigo mortal” do torneio.
Mas talvez o exemplo mais evidente desse papel de testemunha da história tenha acontecido no dia 1º de julho de 1990. Uma partida das quartas de final da Copa da Itália colocou frente a frente uma nação que estava renascendo e outra que estava perto de se dissolver. A Alemanha, que disputava unificada pela primeira vez um Mundial desde 1938, venceu a Tchecoslováquia, que apenas três anos depois se dividiria entre República Tcheca e Eslováquia.

Fundamental para ajudar um gigante a se reinventar

O peso de ser o principal culpado pelo mais sangrento conflito da sociedade moderna foi devastador para a Alemanha. E foi no futebol que o gigante europeu encontrou uma maneira de se reinventar e se reerguer. “O futebol teve um papel fundamental na reconstrução da Alemanha no pós-guerra. A conquista da Copa de 1954, por exemplo, foi de grande relevância, porque os destroços não eram apenas físicos. A Alemanha também estava moralmente arrasada”, explica Elcio Cornelsen, coordenador do núcleo de estudos sobre futebol, linguagem e arte da UFMG.

Após a derrota na Segunda Guerra Mundial, em 1945, a Alemanha foi proibida de disputar competições da Fifa até 1950. O primeiro jogo depois da punição foi diante da Suíça, um país historicamente neutro, e antes de a bola rolar já ficou evidente que não se tratava de uma seleção como qualquer outra. “Quando as duas equipes ficaram perfiladas no gramado, em vez de executarem o hino alemão, o que seria o normal, fez-se um minuto de silêncio”, conta Cornelsen.

Com o passar dos anos, a Alemanha voltou a ser uma potência econômica e política, mas somente quando voltou a receber a Copa do Mundo, em 2006, alguns fantasmas ficaram definitivamente no passado. “Esta foi uma Copa decisiva para o moral dos alemães. Ficou marcada pelo surgimento de um novo patriotismo alemão. As pessoas puderam finalmente voltar a sair de casa enroladas a uma bandeira, por exemplo”, diz o professor da UFMG, ao explicar que um pequeno detalhe para alguns pode ser um grande passo para outros.

“Para um alemão, exibir a bandeira com orgulho não era algo tão simples quanto para um brasileiro, por exemplo. Porque o nazismo extremou o uso dos símbolos nacionais alemães, tornou-os sinônimos de um momento histórico condenável”, afirma Cornelsen. 

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