A popularização das drogas sintéticas provocou um salto gigantesco nas apreensões de ecstasy em Minas em dez anos. Dados da Polícia Civil, obtidos via Lei de Acesso à Informação, apontam que, de 2008 a 2018, os flagrantes de circulação ilegal do alucinógeno aumentaram mais de 28 vezes no Estado.
Classificado como um tipo de anfetamina – estimulante do sistema nervoso –, o comprimido leva o usuário a estados de euforia e prazer.
Culturalmente, ficou conhecido como a “droga do amor” por ter efeito empatógeno, ou seja, intensificar a percepção de sons e toques, favorecendo a sociabilidade e a conexão do usuário com outras pessoas.
Nas últimas décadas, o consumo se tornou frequente em festas de música eletrônica, as raves. Mas especialistas garantem que, atualmente, a demanda pela “bala”, como é chamada, abrange público muito mais heterogêneo.
“É preciso detectar as redes que fazem as drogas chegarem ao país. O modelo atual fecha os olhos para isso e ataca de forma equivocada o problema” (Henrique Abi-Ackel, aadvogado criminalista)
Difusão
A facilidade de manuseio das substâncias em laboratórios caseiros e a difusão das técnicas de fabricação pela internet estão entre as razões para a produção crescente. Como consequência, o preço do ecstasy acabou se tornando mais acessível, ampliando o número de consumidores.
Chefe do Departamento de Combate ao Narcotráfico (Denarc), o delegado Júlio Wilke afirma que a expansão das drogas sintéticas é evidente. Segundo o policial, as apreensões são uma consequência do combate ao tráfico no território mineiro.
Wilke ressalta, no entanto, que a dinâmica de comercialização do ecstasy se difere dos entorpecentes consumidos em volume maiores, como maconha, cocaína e crack. “Nesse caso, estamos lidando com outro tipo de traficante e de clientela. É um produto cuja matéria-prima é importada, mas que pode estar sendo comprada, por exemplo, pela deep web (área da internet que não pode ser acessada através de mecanismos de busca)”.
Produção caseira
Em meio ao aumento de mais de 2.000% nas apreensões, os flagrantes e a ousadia são cada vez mais frequentes. Em junho, um homem de 27 anos foi preso em BH por manter dentro do apartamento, no Barro Preto, a poucos metros do Fórum Lafayette, um laboratório para produzir o alucinógeno. Os investigadores estimam que mais de 10 mil unidades tenham sido produzidas pelo jovem, que faturava até R$ 50 mil por mês.
Em Poços de Caldas, no Sul de Minas, três pessoas foram presas na última semana por “delivery” de ecstasy. Em uma das entregas, que eram feitas pelos Correios, um envelope com 300 comprimidos foi encontrado. A hipótese da polícia é de que a droga também tenha sido produzida na casa dos suspeitos.
Acessível
A modernização dos registros de crimes pelas forças de segurança também pode explicar a explosão nos números. Quem afirma é a capitão Layla Brunella, chefe da Sala de Imprensa da Polícia Militar.
“Em 2008, os boletins de ocorrência ainda eram confeccionados a mão, portanto havia dificuldade de condensar os dados. Com o tempo foi possível captar melhor essa realidade”, explica. “Mas não há dúvida de que a produção de ecstasy cresceu e o preço ficou mais viável ao usuário”, pondera a militar.
Parte do efeito do ecstasy está ligado à liberação excessiva de dopamina, que pode se tornar escassa e causar tristeza nos dias seguintes ao uso. O efeito é chamado “blue Tuesday” (terça-feira triste) pelos usuários
Riscos para a saúde
A difusão das técnicas de fabricação caseira do ecstasy não desafia apenas as forças de segurança que lutam para coibir o tráfico. Os riscos ao organismo e a falta de conscientização dos usuários sobre o perigo de se consumir a substância preocupam os profissionais da saúde.
“A pessoa pode ter episódios psicóticos por conta de efeitos adversos e até arritmia. Estudos científicos já mostram que parte dos comprimidos apreendidos pelas polícias têm adulterantes como vermífugos proibidos até para uso animal, isso pode causar convulsões e até levar a pessoa à morte”, alerta a psicóloga clínica especializada em redução de danos e secretária executiva da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), Maria Angélica Comis.
Hoje, garante a especialista, há cerca de 25 projetos espalhados pelo Brasil com a lógica da redução de danos em contextos de festas e locais onde o ecstasy é mais consumido. A ideia é oferecer aos usuários informações sobre uso dessas substâncias e falar dos cuidados para as pessoas que passam por experiências difíceis após a ingestão da droga.
Em apartamento no Barro Preto, em BH, Polícia Civil encontrou uma prensa, balança de precisão, peneira e vasta matéria-prima para fabricação da droga
Capitão Layla Brunella, da PM)
Mudanças
Advogado criminalista e membro do Instituto de Ciências Penais (ICP), Henrique Abi-Ackel afirma que aceitar o fenômeno das drogas como algo que acontece na maioria das sociedades é um bom começo para combater o problema “de forma inteligente”.
“Nos anos 1980, no Canadá, houve um surto de Aids devido à grande quantidade de compartilhamentos de seringa para o uso de heroína. Eles então criaram espaços com material descartável disponível aos usuários. Isso fez cair não só os casos de infecção por HIV, mas também os índices de uso da droga”, relata o advogado.
Para ele, o momento é o de o Estado refletir sobre a possibilidade de regulamentação. “Até porque quanto mais se proíbe, mais se abre mão de regular esse mercado”, conclui.
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