Incêndio que destruiu 90% do Museu Nacional completa um mês

Agência Brasil
02/10/2018 às 09:15.
Atualizado em 10/11/2021 às 02:45

(Tânia Rego / Agência Brasil)

O incêndio que destruiu 90% do acervo do Museu Nacional  do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista, desencadeou uma série de ações por parte do governo federal. Em um mês, houve desde o anúncio de liberação de recursos para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), responsável pela gestão financeira, à criação da Agência Brasileira de Museus (Abram) e extinção do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram).

Após a tragédia, o esforço é para transformar os anúncios em ações de recuperação e restauração. Os ministérios da Cultura (MinC) e Educação (MEC) concentram as decisões.

O MEC se comprometeu a repassar R$ 10 milhões à UFRJ para ações emergenciais. Do total, foram liberados R$ 8,9 milhões. Segundo o secretário executivo do MEC, Henrique Sartori, o valor pode aumentar para até R$ 12 milhões, “dependendo da necessidade da UFRJ”, mas ainda não tem data para ocorrer.

Acompanhando de perto as ações, com viagens constantes ao Rio e em reuniões do grupo formado para acompanhar a reconstrução, Henrique Sartori disse que os trabalhos estão na fase inicial.

“Estamos aguardando a conclusão do inquérito da Polícia Federal [PF] que ainda está no Rio de Janeiro fazendo a perícia. Depois, começa o trabalho de rescaldo. Hoje os pesquisadores ainda não conseguem totalmente executar tarefas de recuperação de acervo em função da presença da PF”, afirmou o secretário. “Temos muito trabalho. Os primeiros passos foram dados e conseguiremos trabalhar de forma mais focada com a saída da PF.”

Ações

Os R$ 8,9 milhões já liberados deverão ser usados no escoramento estrutural do prédio, para evitar desabamentos e garantir a conclusão da perícia pela Polícia Federal. Também serão aplicados na cobertura provisória do museu (já que grande parte do telhado foi destruída) e no fechamento de esquadrias.

A verba será usada ainda para a retirada dos escombros, que deve ser feita com cautela para separar, cuidadosamente, entulho e acervo. Esta é a etapa inicial das ações. Em seguida, há a implementação de um projeto executivo para a reconstrução do museu, incluindo um novo prédio. A disposição é para mobilizar recursos por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet. Na etapa seguinte, haverá a recomposição do acervo.

Em viagem à Europa, o ministro da Educação, Rossieli Soares, conversou sobre a necessidade de colaboração externa para a recomposição do acervo. Ele se reuniu com autoridades da França, Espanha e de Portugal. Nas conversas, os europeus se comprometeram a contribuir com ajuda técnica e também com peças.

Segundo Sartori, essas colaborações ainda não chegaram porque a recuperação está no começo. A expectativa é de que nas próximas etapas as contribuições comecem a ser enviadas.

Negociações

Oito dias após o incêndio, o presidente Michel Temer assinou duas medidas provisórias (MPs), uma delas autorizando a criação da Abram, que passará a administrar os 27 museus que estão sob responsabilidade do Ibram. A Abram também participará da reconstrução do Museu Nacional.

A outra MP estabelece o marco regulatório para a captação de recursos privados, com a criação de Fundos Patrimoniais, que terá parte dos recursos voltada para a Abram e para a reconstrução do Museu Nacional. Ambas foram publicadas em 11 de setembro, no Diário Oficial da União, passando a vigorar.

Porém, as medidas dependem de aprovação do Congresso Nacional para serem transformadas definitivamente em lei. O prazo para que isso ocorra é de no máximo 120 dias. Segundo o MinC, na fase atual está em processo de elaboração a minuta do decreto que regulamentará a MP e o projeto de estruturação da Abram.

O Ibram, criado em 2009 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, será segmentado em Secretaria de Museus e Acervos Museológicos, responsável por estabelecer as diretrizes e políticas públicas, e a Abram,  responsável por executá-las. A Abram terá um perfil de serviço social autônomo, podendo gerir recursos privados e fazer contratações. A secretaria será criada dentro do MinC.

Controvérsias

As mudanças envolvendo o fim do Ibram, a criação da Abram e o estabelecimento de uma secretaria no MinC geram polêmicas e reações entre os especialistas. Para o museólogo Newton Soares, representante dos trabalhadores do Ibram, haverá um enfraquecimento do setor.

“A parte de gerir a Política Nacional de Museus ficaria com a secretaria, que seria enfraquecida e dificilmente conseguiria colocar em prática da maneira como o Ibram vem colocando”, disse ele.

Newton Soares lembrou que o Ibram nasceu de um esforço coletivo.  “O Ibram é fruto da Política Nacional de Museus, discutida com [pessoas que atuam nesse] campo, que vem apresentando resultado há alguns anos. Não é só a criação da Abram, mas de uma secretaria, que sabemos que não tem nem a mesma força e nem o mesmo valor e autonomia que um instituto.”

Os servidores do Ibram participaram de oito reuniões apenas em Brasília, além de encontros em outros estados para debater a questão. “O que a gente está fazendo é mobilizar tanto museus quanto a sociedade na luta para derrubar a MP”, afirmou o museólogo.

A diretoria do Ibram encaminhou ao MinC uma nota técnica elencando os motivos pelos quais é contra a extinção do Instituto. O grupo argumenta que as funções desempenhadas pelo instituto não estão previstas na MP e poderão ser prejudicadas, como o programa Pontos de Memória, voltado para o reconhecimento e a valorização da memória social de indígenas, quilombolas, povos de terreiro, mestres e grupos das culturas populares.

Financiamento

O texto prevê que a Abram receberá 6% das receitas provenientes da contribuição prevista no artigo 8º da Lei 8.029/1990, mecanismo pelo qual são direcionados atualmente recursos para o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) e a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial. O valor equivale, de acordo com o MinC, a cerca de R$ 200 milhões.

No entanto, houve reações. O Sebrae ingressou com um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal contra a MP pela retirada de parte dos recursos. No documento, os advogados questionam pontos da MP e afirmam que há "desvio de finalidade" da contribuição.

MinC

Em relação ao financiamento, o MinC diz que, como serviço social autônomo, a Abram poderá também ter outras fontes de receita, como fundos patrimoniais, venda de ingressos, licenciamento de produtos, incentivo e aluguel de espaços. Questionado sobre a nota técnica do Ibram, o ministério informou não ter encontrado “qualquer observação capaz de motivar, com o devido embasamento técnico, mudanças na MP. Os pontos levantados foram respondidos”.

À Agência Brasil, o Ministério da Cultura informou que “são inúmeros ganhos em termos de gestão, segurança, atendimento, governança e sustentabilidade, sem qualquer perda em relação ao que há hoje. A Abram receberá mais recursos, terá mais agilidade e poderá contratar profissionais qualificados, sem as restrições próprias de uma autarquia. Trata-se de uma grande evolução”.

Museu Nacional mantém sua capacidade de fazer ciência, diz diretor

Pesquisadores, servidores, estudantes e colaboradores trabalham intensamente para recuperar parte do que foi destruído pelo fogo. O diretor do museu, Alexander Kellner, disse que há um esforço coletivo para recompor o acervo, dar continuidade às pesquisas e planejar a reconstrução da instituição que abriga seis importantes programas de pós-graduação.

Ele informou que as aulas, defesas de teses e dissertações foram retomadas e a produção de conhecimento não parou. "O Museu Nacional perdeu parte de seu acervo, mas não perdeu a capacidade de criar conhecimento e fazer ciência", disse o diretor.

Kellner acrescentou que "os alunos estão defendendo suas teses e dissertações e, dentro desse contexto, estão gerando conhecimento. À medida que isso vai avançando, você coleta material, estuda e isso vai virando acervo. Isso nos dá a certeza de que vamos reconstruir o nosso acervo ao longo dos anos".

Reconstrução

Além do acervo que é reunido a cada novo trabalho, grupos de pesquisadores discutem que tipo de itens podem ser pedidos a outras instituições que se colocaram à disposição para ajudar. Áreas como a Entomologia (estudo dos insetos) e a Antropologia Social estão entre as que mais precisarão de doações, porque tinham acervos frágeis que estavam armazenados no palácio. "A casa tem que dizer para o mundo que tipo de acervo  quer que integre nossas coleções. Estamos nessa fase", afirmou Kellner.

As doações de material para pesquisas são necessárias, mas as peças para exposição ainda vão depender da reconstrução dos espaços para a exibição ao público. Antes disso, no entanto, há uma série de etapas a serem superadas. A Polícia Federal ainda investiga as causas do incêndio, e trabalhos emergenciais de escoramento e cobertura do prédio estão em curso para dar segurança aos investigadores e aos pesquisadores que vão resgatar peças soterradas pelo desabamento.

A contratação de uma empresa responsável por essas intervenções se deu a partir da liberação de recursos emergenciais do Ministério da Educação, ao qual o Museu Nacional está vinculado como instituição que integra a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo o diretor do museu, a intenção é terminar a cobertura e o escoramento o mais rápido possível, mas o prazo estabelecido para realizar o trabalho era de 180 dias. "Em linhas gerais, a gente quer ver se já pode ter acesso a material [soterrado no museu] antes disso, à medida que forem escorando diferentes partes [do palácio]",disse Kellner.

Acervo

Uma equipe de pesquisadores elaborou o protocolo que define as normas para buscas do acervo que está no palácio. O trabalho foi coordenado pela professora Claudia Carvalho, do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da própria instituição, e também contou com a colaboração dos especialistas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). O início das buscas só depende da garantia de que a estrutura está escorada e não corre risco de novos desabamentos.

A vontade de salvar o acervo do museu e seu próprio trabalho de pesquisa levou pesquisadores e servidores a entrarem no palácio durante o incêndio. Um deles foi o biólogo Paulo Buckup, que entrou e saiu diversas vezes do prédio em chamas para resgatar peças, documentos e registros sob o teto, que poderia desabar a qualquer momento conforme o fogo avançava nos andares superiores.

O esforço de Buckup salvou um disco rígido que permitiu manter o calendário de defesa de teses e dissertações do Departamento de Zoologia. Na mesma semana do incêndio, um desses trabalhos pôde ser apresentado. "Só penso que, se eu pudesse, eu teria feito mais. Não me arrependo de nada do que foi feito. Todos os meus colegas que fizeram coisas similares foram muito fundamentais e representam a resistência do Museu Nacional no sentido de superar a adversidade", afirmou.

Arte

Curadora da exposição Kumbukumbu, de arte africana, Mariza Soares disse que na sua avaliação perdeu praticamente tudo, à exceção de peças de metal que podem ter resistido ao fogo. Ela tem trabalhado em seus próprios arquivos para disponibilizar para a sociedade o máximo de conhecimento sobre as peças destruídas.

A exposição organizada por Mariza Soares tinha artefatos doados pelo reino africano de Daomé à família imperial brasileira, e peças insubstituíveis foram destruídas. "Meu desafio é descobrir como vou poder construir vias de acesso a pesquisadores mais jovens, para que possam construir trabalhos sobre esses acervos", acrescentou.

Mariza Soares disse ainda que, no caso da exposição africana, reconstituir o acervo pode não ser a opção mais adequada porque há uma demanda global para devolver aos países africanos as peças de arte e arqueologia que foram retiradas deles no período colonial e da escravidão. Ao produzir artigos e pesquisas com seus próprios arquivos, Mariza espera colaborar com essa devolução: "Gostaria, de alguma forma, conseguir tentar alguma restituição a eles. Esse era um patrimônio que era deles."

Abraço

Pesquisadores, servidores e amigos do Museu Nacional do Rio de Janeiro farão nesta terça-feira (2) um abraço para marcar um mês do incêndio que destruiu o palácio e parte do acervo. O objetivo é somar forças em prol da mais antiga instituição científica do país, que completou 200 anos de fundação.

O local é referência da memória científica, cultural e histórica do Brasil, além de um acervo de história natural, arqueologia e culturas indígenas e africanas. O Museu Nacional funcionava no palácio que foi residência da família imperial brasileira, na Quinta da Boa Vista, parque municipal da zona norte do Rio.

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