Desde que o mundo do futebol passou a analisar a posse de bola com evidente assiduidade – algo recente, se pensarmos historicamente, e indissociável do sucesso de Guardiola no Barcelona –, um dos discursos que foi aos poucos ganhando força é aquele que procura, digamos, relativizar o elo entre qualidade, domínio, merecimento, efetividade, e quantidade de tempo trocando passes. Em grandíssima medida, óbvio, este contraponto é tão bem-vindo e enriquecedor para o debate, quanto simplesmente correto. Por outro lado, a partir dele ergueu-se, como não poderia deixar de ser, um lugar-comum, mais um tipo de muleta na imprensa esportiva; transmite-se a torto e a direito a noção de que, se um time teve menos posse, é por ter atuado clara e necessariamente no contragolpe, esperando, tentando escapar em velocidade. Não existem apenas estas duas formas: “propor”, obrigatoriamente tendo mais posse, ou “reagir”, possuindo desvantagem nesta estatística. Há muitas nuances, complexidades possíveis num jogo. E diria mais: é imensamente plausível “propor” e ter menos posse; a vitória do Cruzeiro sobre o Flamengo no primeiro duelo da Libertadores me parece um ótimo exemplo neste sentido.
A matemática fria não mente: a Raposa ficou menos tempo com a bola no pé no citado duelo no Rio. Foi melhor e mais perigosa? Sim. Apenas nos contra-ataques? Não! Usualmente associamos a dinâmica de proposição de jogo à troca de passes curtos, às triangulações; Mano e Seus Bluecaps fizeram isso no Maraca. Se, ainda assim, ficaram menos tempo com a bola, isso se dá por uma soma de coisas: em primeiro lugar, por terem conseguido frequentemente, quando recuperavam a bola, e ensaiavam esta dinâmica descrita, chegar rápido ao gol do Flamengo, que dava espaços – pois tentava propor (o que não quer dizer que lograva sucesso); os azuis conseguiam encontrar estas lacunas, com inteligência, pela qualidade dos seus atletas nesse tipo de expediente e porque, afinal, elas simplesmente existiam – e aproveitar estes buracos com rapidez não necessariamente indica atuar de forma reativa. Na essência, na ideia, na forma, o Cruzeiro propunha e controlava; mas ao fazê-lo com agilidade, acabava ficando matematicamente menos tempo com a bola. Nenhum problema. O outro elemento que contribuía para este quadro pintado: o Flamengo, quando tinha a posse, sucumbia ao bloqueio celeste – ora mais alto, ora mais recuado –, vendo-se obrigado a trocar passes inócuos no campo de defesa. Isso contribuía para o tempo de posse – mas em nada para a qualidade do jogo e o domínio, em si.
Tenho falado incessantemente que rotular Mano como retranqueiro e/ou treinador que apenas “espera”, de “pouco repertório”, é injusto. Uma nuance que é preciso entender e é pouco falada: Mano preza bastante a solidez defensiva. É perfeccionista com isso. O jogo de futebol é extremamente aleatório. Mano tenta aumentar sua força de interferência, de controle, ao procurar posicionar o time no momento sem a bola dando a menor margem possível para erros, espaços concedidos. Relacionado a isto está seu zelo pela demarcação, pela composição das linhas na fase de combate – por isso chama a atenção dos laterais que abandonam a linha de quatro de modo a não conseguir lá estar de volta adequadamente quando o oponente está atacando. Por querer ter essa incidência sobre o jogo, pede que o time recomponha e se organize de tal maneira que costumeiramente possibilita ao adversário trocar alguns passes, ficar um tempo com a bola no seu campo de defesa – enquanto a retaguarda de Mano se ajeita. Além do mais, ao recuperar a posse, na medida em que a equipe está recomposta, às vezes é preciso um tempo para armar o “modo ataque”, pra subir com suas peças – mas se o outro está aberto, você pode tentar uma estocada mais veloz. Zelo por um estilo de defesa não significa pouca ambição/qualidade no momento ofensivo...