A história de vida da cravadora de semijoias Roselita de Souza se confunde com a do prédio inacabado em que ela cresceu, na rua Rio Grande do Sul, em Belo Horizonte. Há 47 anos vivendo no imóvel, ela está assistindo a formação da quarta geração da família no lugar que permanece intocado desde que a obra foi paralisada no fim da década de 1950. Agora, com o anúncio do projeto de revitalização do hipercentro da capital, a mulher e os outros 15 moradores do edifício aguardam informações da prefeitura sobre as possíveis intervenções que serão feitas no local.
No que depender da morosidade com que o plano de recuperação foi conduzido nos últimos dez anos, Roselita pode esperar sentada. O Executivo municipal ainda está em fase de planejamento para definir como o número de imóveis ociosos será atualizado. O diagnóstico mais recente, que apontava 92 edifícios vazios no hipercentro, é de 2007.
Nesta semana, a PBH anunciou o plano de revitalizar o hipercentro; medidas não foram detalhadas
Além disso, outro entrave são as moradias irregulares. Para Roselita, a única preocupação é ser levada junto com os parentes para um imóvel ruim. “Não estamos aqui por causa de uma invasão. Meu avô era funcionário da construtora e foi colocado para tomar conta do prédio quando a obra parou. O tempo passou e a família cresceu. A prefeitura já chegou a falar que vai terminar a obra e nos indenizar. Estamos aguardando”.
Na avaliação do advogado e presidente da Comissão de Direito Imobiliário da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) MG, Kênio Pereira, pelo período longo de permanência no local, a situação já garante à Roselita e à família o usucapião dos cômodos ocupados.
“O imóvel tem que cumprir uma função social. Se o dono não entra com ação de reintegração de posse, quem mora no local se torna proprietário pela inércia. O Estatuto da Cidade destaca até mesmo a possibilidade de usucapião coletivo”, esclarece Kênio.
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Esqueletos
Encontrar “esqueletos” na paisagem urbana do hipercentro não é tarefa difícil. Na própria rua Rio Grande do Sul, outro prédio repleto de histórias para contar aguarda há 26 anos pelo arremate final. É o caso do condomínio Interpark, que tem hoje mais de 70 ações de indenização na Justiça, movidas por compradores que pagaram pelos apartamentos que nunca ficaram prontos.
De acordo com Cláudio Beltrão, proprietário de um estacionamento que funciona no andar térreo do edifício, a obra começou com a hoje extinta Construtora Encol, falida nos anos 1990. Depois, foi comprada pela Santa Marta, que não concluiu a empreitada. “Em 17 anos aqui, vi o dono da construtora no máximo umas três vezes”.
A reportagem não conseguiu contato com os proprietários dos edifícios mostrados na matéria.
Moradora mais antiga de prédio cinquentenário assistiu ‘de camarote’ transformação da capital
Quem passa pela esquina da rua Rio Grande do Sul com Tupis, no Centro de BH, não imagina quanta história pode estar guardada dentro daquele grande edifício sem reboco, com tijolos à mostra, batizado de Condomínio Marataízes.
TESTEMUNHA OCULAR - Há mais de meio seculo morando no Condomínio Marataízes, Terezinha assistiu transformação do hipercentro dentro de um imóvel que permaneceu intocado.
Terezinha Maria de Moraes, moradora)
Lá dentro, Terezinha Maria de Moraes relembra quando chegou à construção, há cerca de 50 anos, acompanhada do marido que era operário da obra.
Testemunha do adensamento urbano da capital mineira, ela relata que, à época, nem metade dos prédios que dominaram a região estava de pé.
“Era outra cidade. Aqui nessa rua mesmo passava um rio. Em volta daqui era só mato. Não tinha tanto carro, nem tanto barulho. Belo Horizonte cresceu demais”, rememora Terezinha Maria.
ESPERA – Para Alessandra Valamiel, expectativa é a de regularização e permanência no edifício em que vive com toda família; a estrutura foi batizada de Condomínio Marataízes
Em meio século morando no edifício, ela conta que já passou por momento de sufoco, quando várias tentativas de invasão foram feitas por moradores de rua.
“Já tivemos que colocar gente para fora. Uma vez dei de cara com uma mulher alta e muito estranha dentro da minha sala. Tive que gritar ‘fora!’ várias vezes para que ela saísse”.
A sobrinha de Terezinha, Alessandra Valamiel, conta que, apesar do crescimento da cidade e das tentativas de invasão que aconteceram pontualmente, a rotina no edifício é tranquila. “Seria ótimo se a prefeitura pudesse regularizar nossa situação, mas não temos do que reclamar aqui”, comenta.
Apoio do Legislativo e da Justiça será essencial para que PBH concretize revitalização
Quem aposta no potencial do hipercentro de Belo Horizonte como um lugar de moradia sabe que a transformação proposta pela prefeitura não será algo simples. Projetos como a reforma do edifício Tupis, mais conhecido como ‘Balança mas não cai’ se arrastam desde 2007, devido a imbróglios na Justiça envolvendo o antigo proprietário.
O empresário Teodomiro Diniz, atual dono do imóvel, afirma que o projeto está sendo retomado aos poucos, já que os impasses legais ainda não foram resolvidos por completo.
“Quando adquirimos o prédio, em 2007, a Justiça ainda agia de forma lenta e sem uma visão da realidade. Era um imóvel que não tinha interesse comercial para ninguém e, depois de uma década, estamos chegando ao final. A expectativa é a de inaugurar ainda este ano”, explica.
Apoio
Secretária municipal de Serviços Urbanos, Maria Caldas explica que a prefeitura vai contar com o apoio do poder legislativo e da Justiça para executar todas as medidas que compõem o projeto de revitalização do hipercentro.
“Reconhecemos a autonomia dos poderes e vamos fazer a nossa parte, que é o diálogo. Direitos de herança de imóveis antigos, por exemplo, são coisas em que a gente não consegue nem pretende interferir. Fazer a adaptação de imóveis para uso residencial já foi possível graças a uma lei que estava em vigor e hoje não está mais. Agora vamos tentar reeditar a lei e fazer processos muito mais ágeis de licenciamento, mas no limite da nossa competência”, frisa.
HISTÓRICO – Edifício cinquentenário abriga quatro gerações de uma mesma família em BH