(Flávio Tavares)
Pais que optaram por manter os filhos longe da sala de aula poderão contar com uma legislação específica para o modelo de educação domiciliar no Brasil. Um projeto de lei que faculta às escolas a permissão do direito de educar em casa, a exemplo do que ocorre em dezenas de países, deve ser votado este ano.
Autor do texto, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o deputado Lincoln Portela (PR/MG) promete acelerar a votação do PL que, para ele, se aprovado, representará um ganho enorme para o país.
“Legalizar a educação domiciliar é garantir direitos humanos. Ensinar em casa não só ajuda a descongestionar escolas como estimula o autodidatismo e o interesse pelos estudos”, defende o deputado.
A Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) estima que pelo menos 2.500 famílias brasileiras tenham escolhido educar os filhos fora do ambiente escolar. Minas Gerais é o estado campeão de adeptos, seguido por São Paulo e Bahia.
Escola desleal
Presidente da Aned, Ricardo Iene Dias levanta a bandeira dentro de casa. Pai de Lorena, de 17 anos, e de Guilherme, de 14, ele e a esposa, Lílian, decidiram, há cinco anos, que tirariam os filhos da escola e adotariam o modelo domiciliar, amplamente difundido pelo mundo. A decisão foi embasada por uma das principais razões que levam, hoje, os pais brasileiros a colocar a medida em prática: inadequação do ambiente escolar aos dogmas familiares.
“Aos 11 anos, Lorena começou a sofrer muita pressão na escola, para namorar. Quando descobriram que ela era BV (gíria usada por adolescentes que significa boca virgem) foi ainda pior”, conta Dias. Embora seja um caso isolado, para ele denota um ambiente desleal com ensinamentos muitas vezes precoces.
A garota foi a primeira do país a conseguir na Justiça o certificado de conclusão do ensino médio e a oportunidade de ingressar na faculdade, onde estuda jornalismo há seis meses.
De Contagem, na Grande Belo Horizonte, também vem um exemplo de que os mineiros têm buscado cada vez mais, nessa maneira inovadora, a forma ideal de educar os próprios filhos. Contrária à preferência da maioria dos amigos, vizinhos e familiares, a dona de casa Renata Rodrigues Correa, de 32 anos, passou por cima de preconceitos e decidiu, em 2012, que criaria um ambiente mais adequado para alfabetizar os três filhos.
O resultado, garante ela, que dedica tempo integral aos filhos Bruno, de 13 anos, Felipe, de 11, e Isaque, de 5, vem sendo colhido ano a ano. “Meu filho do meio não estava se adaptando à escola, sofria bullying e engordou muito. Não tive dúvidas de que ensiná-lo em casa seria melhor e mais saudável”, diz.
A experiência vem sendo repetida com o mais velho e o pequenininho que, aos poucos, vai aprendendo a ler e escrever. Ao contrário do que ocorre na sala de aula, a rotina no ambiente familiar respeita as particularidades. “Temos horários para estudar, mas isso varia muito de um para o outro. Meu interesse não é dar conteúdo, passá-los por bimestre, mas fazer com que aprendam”.
Sala de aula substituída por experiências nos cinco continentes
Recentemente, Luís Gustavo de Oliveira, de 36 anos, e Jane Martins, de 38, decidiram substituir a sala de aula a que submeteriam os filhos Caio e Sophia, de 8 e 5 anos, respectivamente, pelas experiências do mundo. O plano do casal de gaúchos é percorrer pelo menos 100 países nos cinco continentes e dar à prole a oportunidade de aprender sob uma ótica diferente, com “Novos Olhos” – nome da expedição, que começou há um mês.
Inovadora, a experiência do homeschooling ou unschooling (siglas em inglês para o método de educação fora da escola) é controversa no Brasil não só quanto à legalidade, mas pela real possibilidade de oferecer educação de qualidade, e divide opiniões.
Professor de Políticas Educacionais na PUC Minas, Carlos Roberto Jamil Cury questiona a metodologia que, para ele, peca principalmente por privar a criança da vivência social. “Deixar de socializar me parece uma grave lacuna na formação das pessoas. É na escola que se tem a oportunidade de viver o diferente”, argumenta o especialista, embora acredite que o modelo alternativo ajude a mostrar os problemas de uma escola tradicional.Novos Olhos/DivulgaçãoCasal gaúcho vai percorrer o mundo com os filhos, de 8 e 5 anos,embusca de novas experiências de vida
Novas referências
Mas abandonar, mesmo que por um período determinado (cerca de cinco anos, nos planos originais dos gaúchos) e conhecer o novo parecem, para Luís e Jane, a melhor maneira de ensinar os filhos. “Estamos sendo muito cautelosos para que eles recebam os conteúdos exigidos no Brasil, mas nosso foco é mostrar que nossas referências, nossa maneira de pensar e os valores não são absolutos. Estamos no processo de formar neles um caráter forte e irrepreensível”.
Economista e pesquisador em educação, Cláudio de Moura Castro apoia a educação domiciliar. Para ele, o mundo diz mais do que os especialistas. “A resposta é o resultado do outro e polemizar é um falso problema. Para que antagonizar algumas centenas de pais brasileiros entusiasmados com a ideia, quando se tem mil coisas para se preocupar com a escola que não consegue educar?”, questiona.
No entendimento do juiz Marcos Flávio Lucas Padula, titular da Vara Cível da Infância e da Juventude de Belo Horizonte, esse tipo de ensino só seria razoável se houvesse uma regulamentação e um acompanhamento legal. “Deixar simplesmente por conta dos pais, sem uma supervisão, não obstante a gente tenha ouvido falar em bons resultados, me parece complicado”, avalia.
Além disso:
Não existe no Brasil uma legislação específica que trate do assunto ou defina regras sobre a educação domiciliar. Entretanto, há leis que mencionam obrigações e deveres dos pais com os filhos em relação à vida escolar. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), por exemplo, diz que é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos 6 anos, no ensino fundamental. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular os filhos ou pupilos na rede regular de ensino. O Código Penal define como abandono intelectual “deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária seu filho em idade escolar”.
Legislação em países onde a modalidade é permitida:
• Estados Unidos: os requisitos para educar em casa variam nos estados. Estima-se que mais de 2 milhões de crianças recebam esse tipo de educação, a maioria na Califórnia e no Texas.
• Canadá: a regulamentação varia de província para província. Estima-se que pelo menos 1% da população estudantil canadense seja educada pelo método domiciliar.
• Chile: a Constituição diz que os pais têm o direito prioritário e o dever de educar os filhos e que o Estado deve dar proteção especial para o exercício desse direito.
• Austrália: a regulamentação varia, mas o apoio do Estado aos pais que decidem pelo método é grande. Não há números oficiais sobre a quantidade de adeptos.
• Bélgica: os pais são livres para escolher o método de educação domiciliar, estabelecido na Constituição, mas devem informar, anualmente, ao governo federal.
• Bulgária: a lei diz que os pais devem matricular os filhos na escola, que decide se concede ou não permissão para que a educação passe a ser feita em casa.
• Dinamarca: o método é legalmente reconhecido e os pais devem reportar às autoridades locais que pretendem ensinar os filhos desta maneira.
• Inglaterra: os pais são livres para prover a educação domiciliar e não têm obrigação de reportar às autoridades.
• Estônia: toda criança deve ser matriculada na escola, mas os pais podem, legalmente, aplicar a educação domiciliar.
• França: é permitida por lei e os pais devem avisar, anualmente, as autoridades locais e serviços de inspeção sobre os assuntos ensinados em casa.
• Irlanda: os pais podem escolher a modalidade, mas precisam se registrar numa agência nacional responsável por garantir o bem-estar e os direitos das crianças. A instituição precisa ser convencida de que a educação proposta atende aos requisitos mínimos de ensino.
• Itália: é uma forma reconhecida de cumprimento de dever dos pais para educar os filhos. É necessário, porém, obter uma autorização prévia da escola.
• Holanda: a educação domiciliar é legal apenas como opção para pais com objeções filosóficas e/ou religiosas, contrárias às instituições de ensino.
• Noruega: também reconhece como legal a educação em casa desde que os pais reportem a escolha às autoridades locais.
• Portugal: os pais que fizerem a escolha, permitida por lei, devem informar à escola para que forneça os materiais didáticos necessários.
• Suécia: é uma forma de ensino legalmente aceita desde que os pais reportem ao município a escolha feita.
• Equador: a opção de educação é autorizada pelo governo, que diz que os pais devem adequar os ensinos dos filhos com base em princípios e crenças pessoais.