Durante anos dono da camisa número 1 de grandes equipes do futebol nacional, como o Flamengo, Corinthians e Atlético, Bruno Fernandes hoje é conhecido pelos detentos e funcionários da Nelson Hungria como o 326944, seu número de identificação no sistema prisional. A mudança de atleta para presidiário é o único tema que faz o goleiro chorar.
No local onde deve passar os próximos quatro anos, em regime fechado, ele não tem regalias e é tratado como outro preso qualquer. Alegando não se acostumar jamais à situação, o jogador se diz hoje uma pessoa melhor, tanto pai, quanto marido e filho.
A força para o recomeço vem de cinco pessoas: os três filhos, a mãe e a esposa. Apesar de morar no Rio de Janeiro, a dentista Ingrid Calheiros não perde nem um dia de visita.
Ela chegou a ficar grávida de Bruno, mas sofreu um aborto espontâneo. Episódio que ainda não foi superado pelo casal.
Mas conhecedor como poucos da gíria futebolística “bola pra frente”, o atleta quer refazer a vida, deixando para trás os erros do passado, dos quais não tem medo de falar. É o que você confere a seguir na entrevista completa com o jogador.
Do que sente mais saudade hoje?
Da família. Quando você está no sistema, se sente um pouco sozinho, sente saudade das coisas que antes não dava valor. Quando está numa situação como essa, a coisa mais importante é a família. Sinto muita falta das minhas filhas, esposa e mãe.
E o futebol?
O futebol sempre foi um sonho, desde criança. Sinto muita saudade da torcida gritando meu nome, do Maracanã e do Mineirão lotados. Mas eu acho que trocaria tudo isso pela família.
Quando você viu que passou de ídolo do futebol a detento número 326944, como foi sua reação?
As lágrimas que caem no rosto já explicam tudo. No começo eu estranhei muito, porque de ídolo a um presidiário, você chegar em uma cela escura, fria, tendo que passar a comer uma alimentação que não é boa. Acostumar, jamais, mas se adaptar é muito difícil. No começo eu pensei em várias situações dentro da minha cela, num lugar onde o preso paga o seu castigo, fica em observação durante 15 dias. Só nesse lugar eu fiquei dez meses (chora).
Como foi o período de isolamento nesses dez meses?
Eu tentei uma vez o suicídio. Pendurei um lençol na janela, pedi perdão a Deus, primeiramente, sem saber do mal que eu estava fazendo à minha vida e não ia ser perdoado nunca, e pulei no lençol. Fiquei pendurado ali por 10, 15 segundos, mas arrebentou e eu caí no chão. Olhei para um lado e pro outro, naquela cela escura, e vi a minha Bíblia e pensei: ‘Meu Deus, o que eu estou fazendo comigo? Eu tenho filhos lá fora, uma vida imensa pela frente, não vou fazer isso’. Hoje eu vivo pelos meus filhos, mulher e mãe. Eu tenho certeza de que eu sou, depois de tudo isso, uma pessoa melhor, um filho melhor, um pai melhor e um marido melhor. Então, vou dar o meu melhor para todas elas.
Você confirma que a Ingrid chegou a estar grávida e perdeu a criança? Você poderia ser pai de novo?
Eu não conversei ainda com a minha mulher, mas é tudo o que eu quero na vida. É uma coisa que nós, na verdade, ainda estamos superando.
Você trabalha na cadeia?
Tendo a oportunidade de trabalho. O que eles colocarem para poder fazer, eu faço. Hoje faço de tudo um pouco. Eu gosto tanto de futebol que costuro bola (ri), faço artesanato. Se tem alguma coisa para ser feito, como o projeto de uma vassoura, eu faço também, não tem problema. Eu não tenho vergonha nenhuma. Já trabalhei na faxina, na lavanderia. Tendo a oportunidade, eu trabalho.
O que a cadeia mudou no Bruno?
Eu acho que não precisa de muito para ser feliz. Você pode viver com o básico, com as coisas mais simples, com as coisas que, às vezes, as pessoas lá fora não enxergam, que é o amor. Então, hoje eu sou uma pessoa melhor, sou um ser humano melhor.
Se você tivesse que, nesse Dia dos Pais, que é quando a matéria será publicada, mandar um recado para o Bruninho, qual seria?
Se ele estivesse aqui do meu lado eu ia poder, pelo menos, abraçá-lo e pedir perdão. Mas, com certeza, esse momento um dia há de chegar e eu preciso só de uma oportunidade para poder olhar nos olhos dele e dizer que, independentemente do que aconteceu, que ele me perdoe. E que eu possa abraçá-lo, que eu possa dizer que o amo, que ele me dê a oportunidade de tentar explicar tudo que aconteceu realmente, não o que foi veiculado, o que está dentro desse processo.
E se ele te perguntar onde está o corpo da mãe dele? O que você vai dizer?
Eu até peço, nesta oportunidade que estou tendo, que entreguem os restos mortais para que possam dar um enterro digno para esta pessoa. Mas é uma coisa que eu não posso fazer, não está na minha mão. Gostaria de poder fazer isso até por tudo. Eu acho que seria pelo meu filho, pela família dela, pela minha família. Seria importantíssimo nesse momento. Mas não está nas minhas mãos, eu não tenho esse conhecimento. É isso que eu ia tentar explicar para ele.
"Um amigo me aconselhou a fazer meu papel de homem e assumir a criança", afirma Bruno (Foto: Carlos Roberto/Hoje em Dia)
E se ele perguntar por que você sabia que a mãe dele estava morta e não quis contar para ninguém? Como vai explicar?
É como tentar explicar pro mundo todo, mas sempre vai cair na mesma pergunta. Então, não tem como explicar. É tentar explicar para ele: ‘No dia que você for da minha idade, você estiver na fase de adolescente e tiver grandes responsabilidades, tome cuidado, olhe com quem você vai andar, as amizades, tome conta da sua vida’. Tentar orientá-lo, porque isso não tem como explicar, não tem jeito. Eu tive medo, tentei proteger alguém... Enfim, não tem como, é difícil.
E por que você não fez até hoje o teste de paternidade?
Eu estou aqui, qualquer material que for preciso para fazer esse DNA eu faço. Só que lá no início faltou oportunidade. Então, mesmo sem fazer o exame, eu vou assumir a criança, porque ela não tem culpa de nada. Mas, por que fazer o DNA agora? Se for meu filho mesmo, ótimo. Já registrei, já considero e tenho sentimento de pai pela criança. Se não for, o sentimento não vai mudar.
Você se sente culpado pela morte da Eliza?
De certa parte, sim. Eu poderia ter feito alguma coisa e não fiz. Se eu tivesse naquele momento no Rio, depois daquela agressão que teve do menor, se eu tivesse ali tomado a iniciativa, falado: ‘ninguém vai viajar aqui não, vai ficar aí, não concordo’. Se eu tivesse agido ali, eu não teria deixado acontecer. Mas eu fui deixando as coisas acontecerem e simplesmente fechei os olhos até achegar a esse ponto. Ali eu tinha que ter feito uma intervenção. Eu não mandei matar a Eliza, não mandei. Isso eu afirmo. Agora, você sabia? Sabia sim. Mas eu não mandei matar a Eliza.
Se você tivesse que dizer o momento em que errou, qual seria esse momento?
O erro faz parte da vida, principalmente quando a pessoa é muito jovem, quando pensa que nada pode acontecer a ela e que é dona do mundo e intocável. Talvez o meu maior erro nessa situação foi a minha personalidade forte, achar que podia tudo.
Como você conheceu a Eliza Samudio?
Eu a conheci na festa de um amigo. Todos sabem disso. Só fiz sexo com ela uma vez, questão de 15 ou 20 minutos. E a festa é mais ou menos isso, com garotas de programa, sexo e bebidas.
Quando foi que ela passou a te procurar?
Três meses depois, Eliza me ligou no hotel onde eu estava concentrado dizendo que queria conversar. Eu disse que não tinha nada para conversar com ela. Mas ela insistiu, dizendo que, se eu não conversasse, toda a imprensa ficaria sabendo. Até acreditei que havia pegado uma doença. Deixei a delegação ir embora pra conversar com ela. Foi quando Eliza falou que estava grávida. Naquele momento bateu um desespero, pois eu tinha saído de um casamento conturbado e já tinha duas filhas. Eu queria sumir. Como eu ia explicar isso para minha noiva? Tentei manter tudo em sigilo, em silêncio. Se eu não desse dinheiro, ela ameaçava fazer um escândalo. Eu sempre tentava apaziguar a situação, dizendo que ela não precisava fazer aquilo, pois, se realmente eu fosse o pai, ela teria todos os recursos e estrutura necessários para cuidar da criança. A nossa briga começou assim e foi daí que o Macarrão, que era uma pessoa de confiança, tomou a frente de toda a situação.
Você pode explicar a sua amizade com o Macarrão?
Primeiro, não existe esse negócio de gay. Isso é uma fantasia que veio do meu antigo advogado e eu não sei de onde ele tirou essa ideia. Eu sempre frequentei a casa dele (Macarrão) desde de muito novo, e ele me ajudou bastante. Uma pessoa guerreira que veio de baixo, assim como eu. Tivemos uma infância difícil. A amizade cresceu tanto que nós chamávamos um ao outro de irmão. Mas ele tinha ciúmes ao ponto de se intrometer demais na minha vida.
E a tatuagem que ele tem nas costas?
A frase que ele fez, e foi muito questionada durante o processo, é de uma música: ‘devido à amizade nem mesmo a força do tempo irá destruir, somos verdade, quero chorar o teu choro, quero sorrir teu sorriso, valeu por você existir, amigo’. É uma música. Ele queria escrever essa música nas costas em relação à nossa amizade. Isso aí foi bem antes. Tem gente que faz o Rogério Ceni no braço, tem gente que faz o São Marcos. São grandes goleiros. E ele fez uma música em relação à nossa amizade.
Mas Macarrão te acusou de ser o mandante da morte de Eliza...
É uma situação difícil de explicar. Isso me surpreendeu. Eu não sei porquê ele falou isso. Volto a dizer: eu jamais iria mandar matar uma pessoa. Isso foi uma coisa que partiu dele. Mas se eu contasse a verdade, eu estaria jogando o meu irmão na boca do leão.
Valeu a pena ter jogado tudo pro alto pra defender seu amigo?
Não tem como responder assim. O que eu posso pegar de aprendizado é que deu pra rever os meus conceitos, rever a amizade. Enfim, eu amadureci e aprendi muito com tudo o que aconteceu.
E qual é a sua verdade sobre o caso?
A verdade é que eu não mandei matar a Eliza e desde o começo eu sabia que ela tinha sido morta. Ela foi agredida no Rio, tinha um corte bem pequeno na cabeça. O Macarrão falou que tinha sido o meu primo. Mas ela nunca foi agredida na minha presença e nunca esteve privada de liberdade. Foi nesse mesmo dia que eu dei uma surra no meu primo, o Jorge, porque um homem jamais deve bater em uma mulher.
Você disse que um homem não deve bater em uma mulher, mas foi o Macarrão que matou Eliza?
Não tenho como falar, pois não foi nada na minha presença. Não tem como eu falar se foi o Macarrão que matou a Eliza. Pelo que eu conheço do Luiz Henrique, eu acho que ele não teria coragem.
Como foi a morte de Eliza e quem participou?
No dia do crime, Macarrão, meu primo, Eliza e Bruninho saíram de carro do sítio. Macarrão voltou só com o menino e eu vi que tinha acontecido alguma coisa. O Macarrão disse que nunca mais poderia chamá-lo de “bundão”, que ali estava o meu filho para que eu pegasse e cuidasse. Eu me desesperei, tive medo da situação. Não precisava chegar naquele ponto. Aí caiu a ficha.
O que o seu primo contou sobre a morte?
Ele contou que foi uma coisa muito esquisita. Que chegaram numa casa escura, estava tudo muito escuro. Chegou um cara negro, alto, forte e com uma falha no dente. Ele cheirou as mãos de Eliza e perguntou se ela usava drogas. Aí ele amarrou as mãos dela para trás e, depois, o cara cortou o corpo de Eliza. Disse que uma das mãos foi jogada para os cachorros. Aí eu falei: ‘o que é isso?’. Fiquei muito assustado. Aí eu foquei na criança, no Bruninho. Eu estava dizendo pra todo mundo que ele era meu filho. O que eu vou dizer para o meu filho? Que eu mandei matar a mãe dele? Eu tenho muito medo do que pode acontecer, da criação dele. Não quero julgar ninguém, mas se a própria mãe da Eliza não cuidou dela, deixou a Deus dará, o que ela vai plantar no coração dessa criança, se realmente for meu filho?
Em um treino você disse à imprensa: “Ainda vou rir disso tudo”. Como convivia com a morte que você sabia desde o início, mas mentia sobre o assunto?
Por mais que as pessoas possam dizer ‘ele foi frio’, não, eu não fui. Eu estava abatido, muito magro e pareceu nitidamente que era mentira. Só que eu precisava dar uma resposta, falar alguma coisa. Tinha medo de ser preso e já sabia que ia ser preso naquela altura do campeonato. Então, eu comecei a preparar minha família para o pior.
Você conhecia o Zezé e o Gilson? Eles podem ter participado do crime?
Acredito que não. Eu conheci o Zezé antes. Se você for entrar em contato com algum jogador de futebol, você vai ligar pra assessoria dele. Então, todos tinham acesso ao Luiz Henrique. O Zezé era questão profissional ao grupo dos Neguinhos, ao grupo de pagode, à sociedade que eles queriam levar mais adiante. Em relação a essa outra pessoa, o Gilson, eu não posso falar porque não conheço.
A juíza disse, durante o julgamento, que existiam elementos que apontavam sua participação no tráfico de drogas. Você já se envolveu com o tráfico, no Rio ou em Minas?
Será que não existe um preconceito em cima disso aí não, só porque eu saí da favela? Na oportunidade, quando eu estava subindo na vida, nunca passou isso pela minha cabeça. A educação que a minha mãe me deu, a formação, por mais que seja humilde, jamais passou isso pela minha cabeça. Então, não sei se existe um preconceito em cima disso.
Quais são os seus planos quando sair daqui? Jogar futebol de novo?
Não sei quanto tempo mais eu tenho que ficar aqui. Mas enquanto tiver sangue correndo nas minhas veias, eu vou lutar por isso. ‘Mas você sonha ainda com a seleção brasileira?’. Por que não sonhar? Não paga nada. ‘Você sonha ainda em voltar a jogar futebol profissional?’. Por que não? Tudo depende de você. ‘Você volta ao Flamengo?’. Por que não? Acho que seria uma das coisas mais vitoriosas na minha vida. Mas, se por acaso isso não acontecer, não vou me abater e vou continuar lutando e batalhando no meio do futebol. Acho que eu tenho capacidade para isso. Eu respiro futebol, eu gosto de sentir aquele calor, aquela emoção. Eu acredito nisso.