Minas concentra 50% dos resgates a trabalhadores em situação de escravidão no país

Raul Mariano
rmariano@hojeemdia.com.br
Publicado em 13/07/2017 às 06:00.Atualizado em 15/11/2021 às 09:31.

Carlos* iniciava a labuta como ajudante de caminhão em uma distribuidora de bebidas às 6h30. Carregava nas costas o peso de dezenas de engradados de refrigerante até 23h, horário em que terminavam as entregas programadas para o dia. Manteve a rotina por três anos até que foi informado por advogados do Ministério Público do Trabalho (MPT) que ele e os colegas de firma estavam em uma situação de jornada exaustiva, caracterizada como trabalho escravo. 

Aos 38 anos e com a responsabilidade de sustentar a mulher e os dois filhos, o trabalhador se enquadrava em uma situação extrema de exploração, mas ainda comum em Minas. Em 2016, 328 pessoas foram libertadas da condição de escravidão no Estado, o equivalente à metade dos casos registrados no país, segundo dados do MPT.

“Era péssimo. Tenho dois filhos e uma esposa que reclamavam demais. Uma vez, cheguei a sair do trabalho depois da meia-noite”
Trabalhador resgatado da condição de escravidão

O ajudante se viu diante de um misto de alívio e surpresa. Não fazia ideia de que estava sendo explorado, mas sentiu alegria ao saber que aquele sofrimento tinha chegado ao fim. Do período de servidão ficaram apenas as dores na coluna e a lembrança dos momentos que perdeu junto à família. 

“Era péssimo. Tenho dois filhos e uma esposa que reclamavam demais. Uma vez, cheguei a sair do trabalho depois da meia-noite. Em alguns dias, cumpria uma rota que tinha até 60 pontos de entrega. Graças a Deus consegui uma boa indenização”, relata.

Vítimas 

Um ex-auditor fiscal que participou da ação que flagrou os trabalhadores em jornada exaustiva na distribuidora de bebidas em Belo Horizonte, afirma que mais de 200 pessoas foram vítimas da exploração. Segundo ele, todas as provas foram colhidas e documentadas por meio do sistema de controle de jornada da própria empresa.

“O trabalho escravo contemporâneo é constituído por mecanismos que violam a dignidade e a liberdade do trabalhador e o mantém submisso a uma situação extrema de exploração”
Carlos Haddad
Coordenador da Clínica de Trabalho Escravo da UFMG

“Isso ainda impactava o dia seguinte, porque não se garantia o descanso mínimo de onze horas ao trabalhador. Era um conjunto de ataques aos direitos trabalhistas, o que possibilitou a caracterização do crime”, avalia. Segundo ele, o problema se repete em muitos locais na Grande BH, principalmente em distribuidoras de grandes marcas de bebidas e empresas de transporte de valores. 

À frente da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG – órgão criado para oferecer amparo jurídico às vítimas – a professora Lívia Miraglia explica que os flagrantes que aconteciam normalmente nas zonas rurais, estão agora se tornando comuns nos grandes centros urbanos.

“Os dados mostram que, nos últimos anos, houve uma inversão. A maior parte desses trabalhadores está na área urbana, principalmente no âmbito da construção civil e setor têxtil. Infelizmente, são pessoas muito humildes que, geralmente, passaram a vida inteira conhecendo somente aquela situação e acham isso normal”, explica.

* Nome fictício

Ausência de vínculo empregatício favorece abuso

As relações sem vínculo empregatício aumentam as chances de exploração do trabalhador. Na última segunda-feira, uma idosa de 68 anos foi resgatada na cidade de Rubim, no Vale do Jequitinhonha. Ela era empregada doméstica há oito anos e não recebia salário. 

Como se não bastasse, a empregadora ainda usava o dinheiro da pensão que a idosa recebia pela morte do marido. A mulher chegou a fazer três empréstimos consignados, num montante de R$ 9 mil, em nome da trabalhadora.

A operação que foi realizada pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel da Procuradoria-Geral do Trabalho do MPT constatou que a doméstica cuidava de uma casa de três quartos, onde moravam a empregadora, dois filhos e uma neta. Além disso, a patroa teria alegado fazer um bem para a trabalhadora que não teria onde morar depois que o marido morreu. 

De acordo com o auditor fiscal do Ministério do Trabalho, Geraldo Fontana, coordenador do Grupo Móvel, a empregadora terá que arcar com o pagamento das verbas trabalhistas de cerca de R$ 72 mil, referentes aos últimos cinco anos. Ainda não foi possível chegar ao valor que a empregadora reteve da pensão da doméstica.

Cenário

O procurador da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), Maurício Ferreira Brito, explica que os casos registrados em Minas refletem uma realidade nacional. 

“Hoje, esse tipo de trabalho se caracteriza pela total dependência e pela privação do convívio com a família e necessidade básicas de higiene e segurança. Os casos mais comuns são de pessoas que recebem abaixo do salário-mínimo, ou que devem ao patrão e não tem vínculo trabalhista”.

Reforma trabalhista

Para ele, a reforma trabalhista aprovada na terça-feira no Senado só aumenta a possibilidade do surgimento de novos flagrantes. “As próprias condições de livre pactuação e a possibilidade de ficar muito tempo na jornada são características que contribuem para a caracterização do trabalho escravo”.

Trabalho escravo
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