A tarde da última segunda-feira foi inesquecível para a vendedora Alice*. Sentada à espera de clientes na loja em que trabalha, no bairro Lagoinha, Noroeste da capital, ela foi abordada por uma moradora de rua que queria lhe vender uma pintura. Em dez minutos, a mulher fez um desenho, com um sol, uma casa e uma cachoeira. Em contrapartida, pediu R$ 10 que seriam para comprar crack.
Quantidade de usuários de crack apreendidos caiu de 515 para 242 (53%) entre 2012 e 2015, e a tendência é que diminua ainda mais; estatísticas mostram que, até novembro do ano passado, 157 pessoas foram detidas com a droga na capital
Relutante e com o coração na mão, a vendedora deu apenas umas moedas para a “artista”, que foi embora decepcionada. “Ela desenha muito bem. Não sei como foi parar nessa situação. Aqui tem muita gente assim. Pedem água, comida e até para usar o banheiro”, conta a vendedora, que fecha a loja às 18h com receio de ser assaltada.
O relato de Alice faz parte do cotidiano de comerciantes e moradores da região, que até hoje ainda é conhecida como a cracolândia de Belo Horizonte. Por lá, um sem número de pessoas vagam pelas ruas e, sem o menor constrangimento, acendem cachimbos para fumar pedras de crack.
O problema antigo e sem solução a vista voltou à tona após uma operação na cracolândia de São Paulo, que ganhou repercussão em todo o país. Em uma ação conjunta, a Polícia Militar e a prefeitura da capital paulista tentaram desarticular o ponto de uso e venda de drogas que fica no centro da cidade.
Em Belo Horizonte, apesar de os números da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) demonstrarem redução nas prisões por tráfico e apreensões de usuários com porte de crack – em 2012 foram 2.086 pessoas detidas, contra 1.138 em 2015, queda de 36% –, as imediações do Aglomerado Pedreira Prado Lopes e Lagoinha continuam sendo reduto para consumo e venda da droga. Os principais pontos são o entorno do Conjunto IAPI, o viaduto República do Congo, os gramados e uma escadaria da região.
O movimento de usuários é intenso durante todo o dia. Nem mesmo as câmeras do Olho Vivo são capazes de intimidar as pessoas. Cenas constatadas pela reportagem do Hoje em Dia na tarde de ontem.
Amparo
A Secretaria Municipal de Saúde garante ter ações voltadas para os usuários, com destaque para o “Consultório de Rua”, desenvolvido nas regiões Centro-Sul, Leste, Norte, Noroeste e Oeste da cidade. De segunda a sexta-feira, das 15h às 21h, quatro vans com seis profissionais, entre eles enfermeiro e educadores sociais, percorrem as ruas para conhecer esse tipo de público, estabelecer vínculo e acompanhar os casos de consumo abusivo de entorpecentes.
Já a Secretaria de Política Social de BH informou que realiza ações para a população de rua em geral, sem focar especificamente em usuários de drogas.
Para especialistas, modelo repressivo precisa ser revisto
Repensar o modelo adotado para lidar com a questão das drogas é a primeira medida para resolver o problema das cracolândias, tanto em Belo Horizonte quanto no restante do país. A avaliação é do presidente do Instituto Brasileiro de Ciência Criminais (IBCCRIM), Cristiano Maronna.
Para ele, a situação do crack está ligada a um problema de exclusão social, o que exige a elaboração de políticas públicas de longo prazo que possam fazer mais do que simplesmente dissipar os redutos de usuários pela cidade.
“Para combater a exclusão, você precisa de medidas inclusivas. Ou seja, garantir a essas pessoas direitos que elas acabaram perdendo. A intervenção repressiva é sempre ineficiente”, explica Maronna.
Outra preocupação, segundo o especialista, é que a atuação tenha mais de um foco descentralizado. “É equivocado combater o crack apenas nas cracolândias se o tráfico está distribuído na cidade como um todo”, destaca.
Acolhimento
Quem lida diariamente com os problemas ligados à marginalização dos usuários de crack também defende mais investimentos no acolhimento dos dependentes químicos.
O major Flávio Santiago, chefe da Sala de Imprensa da Polícia Militar de Minas Gerais, defende a adoção de ações que visem a redução de danos.
“É um caso muito mais de saúde pública do que de segurança. Até porque a lei não descriminalizou o uso, mas o despenalizou, fazendo com o que o usuário não fique preso”, explica.
Para o major, os usuários precisam ser tratados por profissionais que os ajudem a reestruturar as relações familiares e sociais. “São indivíduos que precisam, primeiramente, ter a autoestima elevada”.
*Nome fictício