Prisioneiras da violência: mulheres agredidas abrem mão da liberdade para viver

Tatiana Lagôa
tlagoa@hojeemdia.com.br
Publicado em 22/06/2018 às 20:41.Atualizado em 10/11/2021 às 00:56.
 (Lucas Prates)
(Lucas Prates)

Longe de casa, sem contato com a família ou amigos nem autorização para sair, trabalhar ou estudar. Confinadas por dias ou até meses. A rotina, cheia de regras, é vivida por mulheres que precisam de acolhimento em abrigos após serem ameaçadas por ex-companheiros. Enquanto a maior parte dos agressores vive livremente, elas ficam trancafiadas sob tutela da Rede de Proteção às Vítimas de Violência do Estado.

Para algumas, abrir mão do direito de ir e vir é a única forma de não morrer. É o caso de Milena*, de 36 anos. Escondida em um hotel na capital, custeado pelo governo mineiro, ela é uma das prisioneiras da violência. Depois de anos convivendo com ataques verbais e físicos do marido, foi esfaqueada e fugiu. 

“Na minha cidade não tinha abrigo. Fiquei uma semana num albergue para morador de rua. Foi horrível, era a única mulher lá. Tinha que acordar cedo e não podia sair. Depois, me trouxeram para BH”.

Na metrópole, Milena também vive presa no quarto, contando o tempo para ter a liberdade de volta. O encontro com a reportagem foi um dos raros momentos com pessoas diferentes. Ao fim da entrevista, uma esperança surge.

Mesmo sabendo a resposta, ela pergunta para uma das profissionais que zelam pela segurança se poderia ir à igreja. “Fica muito perto. Assim que acabar a missa, volto correndo. Prometo”. Não custava nada tentar. Porém, como manda o protocolo, teve que rezar entre as quatro paredes do local onde estava há dias.

BH tem dois espaços onde é possível procurar ajudar em casos de violência contra a mulher. Um deles é o Cerna (avenida Amazonas, 558, no Centro. Telefone: 31-3270-3235). O local atende moradoras de todo o Estado. O outro é o Benvinda (rua Hermilo Alves, 34, no Santa Tereza. Telefone: 31- 3277-4380). Lá, a assistência é apenas para vítimas da capital.

Alternativa

Em Minas, oito casas fazem esse tipo de acolhimento. Elas recebem vítimas encaminhadas pela rede, formada por delegacias, batalhões de polícia, tribunais de Justiça e instituições municipais e estaduais. Nos esconderijos, as mulheres e os filhos menores têm alimentação, dormitório e proteção até que se sintam prontos para retomar a rotina. 

Porém, o custo a pagar é alto. “Quem vai para esses lugares fica com a vida muito restrita. O monitoramento é tempo integral, não pode usar o celular, elas precisam ‘sumir do mapa’. Em alguns casos, são até encaminhadas para outros Estados. É como se estivessem presas mesmo”, diz a coordenadora do Centro de Atendimento Risoleta Neves (Cerna), Lúcia Helena Apolinária. 

À distância

Luíza*, de 27 anos, sabe bem o que é ter os planos paralisados enquanto “assiste” à distância aquele que a espancava seguir a vida. Ameaçada de morte pelo ex-namorado, que andava armado, saiu do interior do Estado e foi recebida em um abrigo em BH. 

Por cinco meses, a jovem manteve a rotina: acordava cedo, fazia os serviços domésticos na instituição, dividia o quarto com pessoas desconhecidas e negociava para assistir ao canal de televisão que queria. “Uma vez comi brócolis 15 dias seguidos, era o que tinha. Hoje não consigo nem olhar para esse alimento”. 

Quando achou que estava livre, Luíza alugou uma casa. Mas recebeu uma ligação ameaçadora do ex-companheiro. Teve que ir, novamente para um abrigo, dessa vez com regras ainda mais restritivas. Ela não aguentou.

A mulher preferiu arriscar morrer do que abrir mão de viver. “Fiquei lá só 24 horas. No primeiro, ainda podia estudar e trabalhar. Nesse último não, e eu já estava na faculdade. Isso me deu um desespero”.

Mulher agredida

Após ficar um tempo abrigada, Luíza decidiu alugar uma casa e cursar faculdade

Retorno à rotina depois do isolamento ainda é desafiador

Depois do longo isolamento, o retorno à vida é outro desafio. Muitas mulheres saem dos alojamentos sem uma casa para onde ir nem emprego, vulneráveis emocionalmente e com a sensação de distância do tão esperado “viver feliz para sempre”.

Após seis meses em uma dessas casas, Luciana*, de 43 anos, começou a ser questionada se já estava preparada para sair. “Caiu a ficha da desordem que estava minha vida”. Ela precisou do apoio em 2016, quando decidiu dar um basta às surras diárias que levava do marido. Ao sair de casa, Luciana perdeu a guarda dos quatro filhos. Hoje, trabalha como ambulante nas ruas da capital e mora em uma ocupação.

Apesar da gratidão que tem pelo abrigo, a mulher lembra que não foi uma fase fácil. “Não há privacidade. Uma vez ganhei uma indenização e decidi comprar mercadorias para ter uma renda. Mas como tive que passar a noite com o dinheiro, não preguei o olho com medo de ser roubada. Você não conhece quem divide o quarto com você, e algumas pessoas parecem muito perturbadas. Dá medo”, diz.

Centro de Atendimento Risoleta Neves atende, em média, 300 vítimas por mês

Desafio

O desamparo após o rompimento do ciclo de agressões desafia até mesmo as autoridades. “A Lei Maria da Penha já foi um grande avanço, mas as políticas voltadas para coibir a violência de gênero são muito recentes. Ainda falta dar condições para que a vítima recomece a vida”, avalia a gerente do Centro de Apoio à Mulher Benvinda, Kate Rocha.

Mais de 50 mil ações de violência contra a mulher tramitam no Judiciário mineiro. O número poderia ser maior, mas a questão econômica também é um entrave. “Dentre as situações que não chegam à Justiça estão as de vítimas que dependem financeiramente do homem”, frisa o titular do 2º Juizado de Violência Doméstica da capital, Marcelo Gonçalves de Paula.

Em alguns casos, diz o magistrado, o agressor não permite que a companheira trabalhe ou estude justamente para exercer essa influência sobre ela. Na tentativa de dar maior suporte para as que buscam ajuda, o Plano Decenal Estadual de Políticas para as Mulheres está sendo debatido em Minas. O documento contempla ações para serem executadas de 2019 a 2029, segundo a coordenadora do Centro de Atendimento Risoleta Neves (Cerna), Lúcia Helena Apolinária.

“É difícil falar de superação. Saí do abrigo há quatro meses, e olha como estou, longe do meu filho. Moro em um cômodo sem fogão, e convivo com o medo” (Luíza, vítima de agressão)

Denúncias

Não é apenas a agressão física que pode ser denunciada. A Lei Maria da Penha inclui também violências patrimonial, sexual, moral e psicológica. “É muito importante pedir ajuda. Muitas mulheres sofrem anos caladas e aguardam chegar no nível mais grave”, afirma a delegada da divisão Especializada de Atendimento à Mulher em Belo Horizonte, Ana Paula Balbino. O órgão fica na avenida Augusto de Lima, 1.942, no Barro Preto, Centro-Sul da capital.

Já nos casos em que há necessidade de acompanhamento mais de perto, a Companhia Independente de Prevenção à Violência Doméstica, da Polícia Militar, é uma opção. “Fazemos contato com as vítimas, visitas surpresas e contactamos o agressor”, explica a major Cleide Barcelos dos Reis Rodrigues. De janeiro a maio, 625 famílias já foram atendidas pela unidade.

*Nomes fictícios
 

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