Sem nome e sem documento: a vida de quem fez das ruas a própria casa

Milson Veloso - Do Portal HD
10/12/2012 às 14:26.
Atualizado em 21/11/2021 às 19:17
 (ANDRE BRANT/ARQUIVO HOJE EM DIA)

(ANDRE BRANT/ARQUIVO HOJE EM DIA)

"Viver na rua é a pior coisa que existe, pois há muita gente malvada. Chegam a meter fogo nos outros, sabe moço!? É covardia demais...". Com os olhos cheios de lágrimas, a voz rouca, as marcas de sofrimento pelo corpo e a fiel companheira Tchutchuca ao lado - uma cachorrinha esperta e valente - Vanessa Pereira, 47 anos, tem o céu como teto em Belo Horizonte.

Vanessa mora há aproximadamente 20 anos nas ruas da capital mineira, no bairro Santa Efigênia, região Leste da cidade. Ela é apenas uma das cerca de 1.300 pessoas que vivem assim em BH, segundo uma estimativa da prefeitura. Foi parar nessa situação após a morte dos pais e de se desentender com os três irmãos. "Eu sou tipo caracol: carrego a casa nas costas", conta, mostrando as duas mochilas onde guarda os seus pertences.
 
Ao longo das duas décadas sem um lugar certo para chamar de lar, ela cometeu crimes,  tornou-se usuária de drogas e, ainda, adoeceu. Porém, nos últimos anos, as coisas melhoraram um pouco, pois a belo-horizontina começou a trabalhar lavando carros e conseguiu recuperar os documentos, tendo direito novamente ao nome no papel.

"Eu estive na violência, fiz muita coisa errada. Já até matei", confessa. Por causa do homicídio, do qual prefere não entrar em detalhes, ela acabou detida e condenada a nove anos de prisão, mas foi liberada após cumprir cerca de três em regime fechado.

 

Vanessa Pereira e sua fiel companheira, a cachorra Tchutchuca (Foto: Milson Veloso)
 

Fora das grades, se envolveu com o crack e só largou as drogas dois anos depois, quando ganhou a cachorra. Isso não foi tudo. Ela também sofreu com tuberculose, precisou passar por quase um ano de tratamento, fez uma cirurgia e tem convulsões de vez em quando, mas as doenças estão controladas.

Segundo Vanessa, a pior parte da vida nas ruas, porém, é a criminalidade."A noite é tenebrosa. Você dorme e não vê quem está passando. Eu mesma fui roubada muitas vezes aqui. Levaram um monte de coisa minha", relata.

Além da violência, outro desafio para os moradores de rua é a própria natureza. É preciso coragem e uma ajuda extra para resistir às mudanças de temperatura e a chuva. "Eu aguento o frio é com a cachaça", diz, sem cerimônia. "O álcool e as drogas acabam se tornando amigos íntimos dessa população", revela Vanessa.

Apesar de todos os problemas e do preconceito da sociedade, há também um pouco de alegria nessa casa sem paredes e com portas para o mundo. "Belo Horizonte é a melhor cidade que existe. Aqui não falta emprego, você não passa fome. Só é vagabundo quem quer", complementa.

Confira no vídeo abaixo outras histórias e a percepção da capital mineira a partir dos olhos daqueles que vivem nas ruas da cidade:

 

 

Cidade à margem

Eles são mais de mil. Andando pela cidade é fácil encontrar algum. Na região Centro-Sul é onde há maior concentração. Juntos, os moradores de rua de Belo Horizonte equivalem à população das pequenas cidades brasileiras. Uma pesquisa realizada pela prefitura em 2005 apontava 1.164. Hoje, a estimativa é de que eles já passem dos 1.300. Mas quem são essas pessoas?
 
Durante o levantamento feito pela PBH foi revelado o perfil de quem vive nas ruas da cidade. Os homens representam a maior parcela, chegando a 85%. A faixa etária predominante é de 25 a 45 anos (75%), seguida por aqueles de 45 a 60 anos (19%) e por idosos (4%). Eles são, em grande parte, do interior de Minas Gerais (41%) e Belo Horizonte/RMBH (36%), mas há também quem tenha chegado à capital mineira vindo de outros estados (21%) e até mesmo de outros países (0,2%).

Quando se avalia o nível de escolaridade dessa população, a pesquisa mostra que 76% sabem ler e escrever, enquanto 9% são analfabetos. Outros 15% aprenderam apenas a assinar o próprio nome. Já em relação à renda, o ganho semanal varia entre R$ 19 e R$ 75, o que corresponde a um valor mensal de R$76,00 a R$300,00. Esse dinheiro pode vir de várias fontes, desde atividades profissionais formais a furtos e roubos.
 
O censo da PBH mostrou também que 11,8% dos moradores de rua de Belo Horizonte apresentam problemas de transtornos mentais e comportamentais. Veja no infográfico abaixo mais detalhes sobre a vida desses belo-horizontinos:

 

 

Violência e descaso

Crimes contra moradores de rua são recorrentes e atingem índices preocupantes em Belo Horizonte. É o que mostram dados do Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH) sobre as tentativas de homicídios envolvendo esses belo-horizontinos.

No período de fevereiro de 2011 a novembro de 2012 foram registradas 96 ocorrências graves na cidade, sendo que 74 resultaram na morte da vítima. "Se a gente avaliar a quantidade de mortes, são números altíssimos. É um indicativo de que há uma concentração de violência nesta parcela da população", analisa o cientista social Maurício Botrel, apontando que o índice possa ser ainda maior, pois nem todos os casos são contabilizados.

Maurício indica que os problemas são, em boa parte, devido a disputas por território, preconceito e envolvimento com o tráfico de drogras. "É uma população que vive numa situação muito vulnerável. Associado a essas condições, há o fenômeno da dependência química e à própria violência da sociedade com o morador de rua", explica.
 

 

A população de rua em BH é de aproximadamente 1.300 pessoas, segundo a PBH (Foto: Lucas Prates/Arquivo Hoje em Dia)
 

Para a coordenadora do CNDDH, Karina Vieira Alves, é preciso buscar alternativas em políticas públicas para mudar a situação dessas pessoas. "A gente percebe muitas violações aos direitos desses moradores. Há uma carência de serviços e até inadequação com a legislação para essa população na cidade", diz.

A solução para o problema, segundo o cientista social, passa por dois níveis: "o primeiro é mais emergencial e está ligado à segurança pública. O segundo se refere a ações de longo prazo, às políticas sociais estruturantes para auxílio aos moradores de rua", explica Maurício.


Assistência pública

De acordo com a Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social de BH, são realizados diversos esforços no sentido de amparar essa população. Para garantir um pouco de conforto e segurança, a Prefeitura de Belo Horizonte oferece alguns serviços a quem vive na rua. Veja abaixo as instituições e vagas oferecidas:

• Albergue Municipal do Floresta – 400 vagas, sendo 80 para migrantes e 320 para população de rua
• Abrigo São Paulo - 200 vagas, sendo uma ala masculina com 150 vagas e uma feminina com 50
• Abrigo Pompeia - atendimento de famílias, com 24 unidades habitacionais disponíveis
• República Maria Maria - voltada ao público feminino, 40 vagas
• República Reviver - masculina, 40 vagas
• Bolsa Moradia - 267 vagas
 
Além disso, a capital mineira ainda conta com o Centro de Referência da População de Rua para adultos, quatro centros de passagem para crianças e adolescentes com a capacidade total de 60 vagas, bem como equipes de abordagem social que atuam nas ruas em nove regionais da cidade.

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