Uma criança assustada chega chorando em seu primeiro dia no abrigo para menores abandonados. Em meio a tantas lágrimas e desespero, uma voz suave soa como um colo. “Fique calmo pequeno, eu sei que as coisas estão muito ruins agora, mas vão melhorar”. Esse é um relato real de um adulto, que ainda muito pequeno, passou por grandes adversidades, mas o conselho de uma cozinheira do abrigo amenizou bastante a dor e repercutiu por toda a sua vida.
Atrás de histórias semelhantes, que possam revelar aspectos positivos e negativos das instituições de acolhimento de menores, a Coordenadoria da Infância e da Juventude (Coinj) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) está realizando uma série de entrevistas, com ex- institucionalizados. Parte do material será compilado em um livro, que deve ser lançado em agosto deste ano.
O trabalho não é fácil, cada entrevista uma carga enorme de emoções, memórias, que passam pela dor do abandono, aos pequenos afagos. “Eles saem muito fragilizados, chorando. É um processo intenso e muitas vezes doloroso”, conta a assistente social da vara da infância, Rosilene Miranda Barros da Cruz.
Contribuição
Mas “cutucar” essas feridas é necessário. As experiências vividas por essas pessoas vão contribuir para a reflexão e o aprimoramento do sistema de acolhimento e dos profissionais que trabalham com crianças e adolescentes, magistrados e servidores do Poder Judiciário.
O superintendente da Coinj, desembargador Wagner Wilson Ferreira, reforça que o objetivo é chamar atenção das autoridades e da própria sociedade para os abrigamentos. “Esse ex-abrigado, já adulto, vai contar as suas vivencias, o que teve de bom e de ruim, alguém que passou pelo abrigo e deu a ele uma contribuição e o que foi viver ali na falta da família”, comenta.
Para ele, passar parte da infância e da adolescência num abrigo gera mais consequências e registros negativos que positivos, por causa da ausência da família. O magistrado espera que os relatos possam sensibilizar as autoridades, principalmente as que decidem pelo abrigamento.
“A passagem pelo abrigo deve ser muito rápida. A recomendação é para o retorno à família de origem, mas em alguns casos não é possível. Nesse caso, deve-se fazer a destituição do poder familiar e o encaminhamento para a substituta. Isso as vezes demora mais do que o desejado”.
Crianças recém-nascidas ou com até 3 anos de idade costumam ficar pouco tempo nas instituições, porque é mais fácil encontrar quem queira adotar. Já os maiores chegam a completar 18 anos nos abrigos.
República para adolescentes ex-abrigados não sai do papel
Depois de uma vida inteira em instituições de acolhimento, muitos meninos e meninas atingem a maioridade sem ter para onde ir. Em 2010, a Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social (SMAAS) encaminhou ao Conselho Municipal dos Direitos de Crianças e Adolescentes (CMDCA) um projeto para criar em Belo Horizonte uma república para esses jovens.
O projeto foi aprovado pelo CMDCA, que chegou a solicitar liberação de recursos do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente (FMDCA). Porém, até hoje, a proposta não saiu do papel.
Segundo a SMAAS, ainda em 2011 foi publicado o chamamento público para conveniar entidade socioassistencial para executar o serviço, mas nenhuma se habilitou. Em nota, a secretaria diz ainda que “portanto, o dinheiro não foi aportado na SMAAS e continuou na conta do FMDCA”.
De acordo com a secretaria, o projeto foi retomado em 2014 e novamente apresentado ao CMDCA, dessa vez para a abertura de duas repúblicas, uma feminina e outra masculina. “A SMAAS aguarda a avaliação do CMDCA ao projeto apresentado para utilizar o recurso do FMDCA para implantar a duas repúblicas para jovens egressos do acolhimento institucional”, diz a nota.
Cada república deve acolher seis jovens, com previsão de custos de R$ 210 mil ano, por instituição. Ainda não há previsão de onde as repúblicas serão instaladas. Elas devem oferecer alimentação, acompanhamento sistemático de profissionais da assistência social, análise e estudo de caso, além de promover a inserção no mercado de trabalho e capacitação profissional.
Em Belo Horizonte, atualmente, 22 acolhidos em abrigos têm idade acima de 17 anos, sendo que destes, sete já completaram 18 anos. Segundo a secretaria, ao atingirem a maioridade os adolescentes são encaminhados para a família de origem ou mesmo para morarem com parentes próximos. “Para os que não têm essa possibilidade é construído um projeto de vida autônoma e independente, com a inclusão no mercado de trabalho, após curso de formação e ou inclusão no trabalho protegido”.
“Queremos que a própria sociedade se sensibilize e comece adotar aqueles com mais idade”
Wagner Wilson Ferreira - desembargador
“Todos estamos cansados de saber como a institucionalização faz mal para a criança e o futuro adulto, mas hoje não temos outra alternativa”
Rosilene da Cruz - assistente social
“Raramente tem denúncias (contra abrigos). Para as crianças de 0 a 6, as unidades conseguem manter uma infraestrutura boa. Mas para os maiores, os meninos apresentam mais dificuldades, eles mesmo destroem. Não querem ficar lá”
Nádia Queiroz Sales - coordenadora da Seção de Orientação e Fiscalização de Entidades Sociais (Sofes) da Vara da Infância