Vizinhos do perigo: famílias que vivem no Anel Rodoviário sonham com moradias dignas

Raul Mariano
rmariano@hojeemdia.com.br
Publicado em 20/08/2018 às 06:00.Atualizado em 10/11/2021 às 01:59.
 (Lucas Prates)
(Lucas Prates)

Três cômodos com paredes sem reboco, trincadas pela água da chuva, por onde escorpiões entram e saem o tempo inteiro. É nessa casa construída há 15 anos na Vila da Luz, à beira do Anel Rodoviário de Belo Horizonte, que vive a ex-doméstica Mary da Silva com os seis filhos – o mais novo com menos de um mês de vida – e uma neta. 

Expostos ao risco diário de serem atingidos por um caminhão desgovernado, já que a pista fica a menos de cinco metros da residência, a família conta os dias para ser removida do local por meio do programa Concilia BR-381 e Anel. 

A iniciativa encabeçada pela Justiça Federal e pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) pretende abranger até 8 mil famílias. O próximo passo, ainda sem data definida, é reassentar 1.100 que moram na Vila da Luz e no bairro Bom Destino, em Santa Luzia, que já estão cadastradas junto às autoridades para receber o benefício.

A estimativa é que ao longo do Anel e da BR-381 morem até 8 mil famílias

Dentre elas está a de Mary, que sonha com um lar mais seguro. Sem emprego, a mulher de 44 anos sobrevive com a renda incerta que recebe como pensão dos pais dos seis filhos e afirma que mal consegue dormir com medo de ser vítima dos escorpiões. “Minha neta de 2 anos foi picada há uns quatro meses. Por sorte, o pior não aconteceu”, diz. 

Na comunidade, dramas semelhantes são comuns. Maura Rodrigues, de 63, vive sozinha em uma casa de dois cômodos que treme a cada passagem dos caminhões, como se fosse desabar. Dentro do imóvel há entulho, lixo, um fogão e uma máquina de costura que serviu por anos como ferramenta de trabalho, mas hoje fica a maior parte do tempo parada.

Até o momento, só 57 famílias foram reassentadas em imóveis próprios

Devido à obesidade e à má circulação de sangue nas pernas, Maura fica o tempo todo sentada, olhando para a rua. “Minha vida é isso. Estou aqui há 20 anos e nada melhorou. O que me sustenta é Deus”.

Mary (à direita) vive com os seis filhos e a neta em três cômodos às margens da rodovia

Mary (à direita) vive com os seis filhos e a neta em três cômodos às margens da rodovia


Esperança

Há também quem está disposto a arregaçar as mangas e lutar por melhorias. O bombeiro civil Edson dos Santos, de 38 anos, que há duas décadas é morador da Vila da Luz, viu inúmeros acidentes na porta de casa. Dentre eles, o atropelamento da própria mãe, que morreu.

Ele afirma que o reassentamento, apesar de lento, é a esperança dos moradores. “Nunca nos acostumamos. Lutamos por essas mudanças há muito tempo e não podemos desistir agora”, garante.

Valor dos imóveis depende do perfil e da quantidade de membros das famílias

Investimentos

Conforme o Dnit, até o momento quase R$ 9 milhões foram investidos nas ações, divididas em duas etapas. A primeira contempla 300 famílias que viviam nas vilas da Paz e Pica-Pau. No entanto, até agora, só 57 se mudaram para residências adquiridas.

Programa vai atender 34 vilas; beneficiados podem indicar imóveis em que desejam morar

Moradores cadastrados pelo Concilia BR-381 e Anel podem indicar o imóvel em que querem morar, seja nos limites de Belo Horizonte ou região metropolitana. O programa oferece aos beneficiados a possibilidade de indenização e compra assistida, de forma que os órgãos responsáveis avaliem se a nova residência se adequa ao perfil de cada família.

“Objetivo é retirar as pessoas das margens das rodovias e disponibilizar a elas o direito à moradia digna. As famílias são ouvidas por assistentes sociais e, a partir daí, é definida a habitação que atende a demanda de cada uma”, diz nota enviada pelo Dnit

Pessoas que trabalham em atividades que exigem espaço físico, geram resíduos ou ruídos, por exemplo, podem ser encaminhadas para casas ao invés de apartamentos.

A coordenadora urbanística de Intervenções Estruturantes da Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel), Danielle Andrade Cruz, conta que todas as edificações indicadas precisam ter registro em cartório. Em seguida, funcionários do órgão vistoriam a estrutura e encaminham o processo para o aval da Justiça.

“O valor dos imóveis depende do perfil e da quantidade de membros de cada família. Há tetos de R$ 120 mil para apartamentos de dois quartos, R$ 135 mil no caso de três quartos e R$ 150 mil para casas”, explica Danielle.

Passagem de veículos a todo momento faz a casa de Maura tremer

Passagem de veículos a todo momento faz a casa de Maura tremer


Incerto

Ao todo, o Concilia visa atender todas as 34 vilas – onde estão as 8 mil famílias – existentes às margens do Anel Rodoviário e da BR-381. O reassentamento, no entanto, depende da chegada de recursos, já que, hoje, apenas o dinheiro para realizar a primeira fase está depositado em juízo, conforme explica o juiz federal André Prado de Vasconcelos, coordenador do programa.

“Temos 1.070 famílias que ainda dependem de orçamento. É impossível ter o valor para todo o projeto. A expectativa é a de que, até o fim do ano, haja uma definição sobre a próxima fase”, frisa o magistrado.

9 milhões de reais foram investidos até o momento, pelo Dnit, no programa de reassentamento

Além Disso

Resultado de uma ação civil ajuizada em 2013 pelo Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União, o programa Concilia BR-381 e Anel restringiu a abrangência às famílias que ocuparam as vilas até 2012. Moradores que chegaram depois não foram contemplados.

Apesar disso, especialistas afirmam que há probabilidade de que oportunistas, infiltrados dentro das ocupações, possam estar à espera de um novo imóvel. Fundador da ONG SOS Rodovias Federais, José Aparecido Ribeiro, que também é estudioso de assuntos urbanos, diz que o problema deve ser visto com seriedade, na esfera criminal.

“Quem ocupa áreas públicas com o objetivo de lucrar com alguma indenização futura precisa ser punido. A nossa cultura, infelizmente, tem esse tipo de pessoa, que tenta se aproveitar de uma desgraça comunitária”.

Para ele, a conduta não apenas lesa os cofres públicos, como atrasa ainda mais a conclusão das remoções. “A cidade perde, a região metropolitana também. E aí nem a duplicação da BR-381 nem a revitalização do Anel saem do papel”, alerta o especialista. 

De acordo com a Polícia Militar Rodoviária (PMRv) e especialistas em transporte, os 27 quilômetros do Anel Rodoviário da capital e os 303 quilômetros da BR-381, que vai de BH a Governador Valadares, são os trechos com o maior índice de acidentes no Estado. As principais obras de melhoria nessas estradas dependem da remoção das famílias que vivem às margens das rodovias.

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