A mudança de comportamento imposta pela pandemia do novo coronavírus impactou mais do que os vínculos interpessoais, fragilizados pela falta de contato decorrente do confinamento. Relações de consumo também mudaram. Muita gente passou a ser mais solidária - famosos e anônimos - e consciente das mazelas sociais. Nas redes sociais, a temática ambiental também ganhou força. Os reflexos observados no meio ambiente, que, em meio ao caos, “respirou” mais aliviado, segundo especialistas, são para lá de positivos. Queira Deus, duradouros.
Especialistas se dividem quanto a acreditar num resultado perene, passada a pandemia. Para alguns, as transformações atuais se farão cada vez mais necessárias e ficarão, por isso, mais presentes. Outros argumentam que é preciso ir além para que a consciência coletiva se sobreponha de verdade à individual.
Luto pela realidade
Psicóloga clínica e familiar, Daniela Bittar tem presenciado a mudanças todos os dias na própria vida e no consultório. Segundo ela, há uma espécie de luto coletivo pela perda de uma realidade que nunca mais será a mesma.
“Luto pela ‘normalidade’ que se conhecia, pelo funcionamento das coisas como eram, pelos planejamentos, pela sensação de segurança, pela liberdade, pelo financeiro. Espera-se que, neste momento, em que as pessoas estão reclusas, que pensem que não é preciso ser produtivo o tempo inteiro”, reflete a profissional, clamando por um modelo de consumo mais sustentável.
Para ela, o momento é propício para uma reflexão sobre prioridades, que deve trazer mudanças reais na forma como nos relacionamos com o meio a que pertencemos. “O mundo vai passar a priorizar o que é mais importante. Vamos parar de ser reféns de um lifestyle que não conseguimos garantir o tempo todo. Ninguém, em nenhuma sessão, levou a angústia da falta do consumo, que é uma grande válvula de escape, mas que não faz falta”, diz.
Não à volta da normalidade
Recentemente, um grupo de celebridades e cientistas trouxe a público, inclusive, um apelo contra o “regresso à normalidade”. No manifesto, publicado pelo jornal francês Le Monde, reforçam que ajustes já não são mais suficientes, pois o problema é sistêmico. “Apelamos aos líderes e cidadãos para que saiam da lógica insustentável que ainda prevalece, para trabalhar em uma profunda revisão de objetivos, valores e economias”, diz trecho do texto (leia mais abaixo).
Doutora em economia aplicada e professora no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG), Kellen Rocha de Souza concorda. Para ela, é preciso sair da pandemia tendo mais que aprendido lições, as incorporado como hábitos permanentes de vida.
“Infelizmente, não é possível prever o comportamento das pessoas no período pós-pandemia, mesmo porque isso dependerá de como as cidades e o país reagirão. Mas acredito que uma parcela da população possa, sim, se conscientizar mais. Do contrário, segundo vários cientistas, teremos outras pandemias no futuro”, argumenta.
A especialista destaca, ainda, que a emergência em saúde nos mostrou o quão frágil é o ser humano e o quanto o planeta vive muito bem sem nós, apesar de não vivermos sem ele, além de como nossos comportamentos nos afetam. “É preciso entender que nossas atividades devem ser limitadas à capacidade de carga do planeta. Em termos individuais, nossas ações podem começar com ‘caronas’ em nossos veículos e com um melhor aproveitamento da energia solar nos proporcionada todo dia. Não existe o ‘jogar o lixo fora’”, pontua.
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Transformações reais exigem reflexões além do indivíduo
Embora reconheça como louváveis manifestos como o encabeçado por artistas e cientistas estrangeiros, na medida em que provocam reflexões e debates, a antropóloga Andréa Zhouri, coordenadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta) da UFMG, é cética em relação a uma mudança permanente de comportamento num cenário pós-pandemia. Na avaliação dela, são necessárias outras condições para que mudanças possam ocorrer de fato na sociedade.
“A consciência individual é fundamental. Mas mudanças demandam condições objetivas para se concretizarem. Condições providas por ações coletivas e políticas. Posso decidir separar o lixo em casa, por exemplo, mas se não houver coleta seletiva e tratamento adequado, minhas ações serão ineficazes. Da mesma forma, se desejo ingerir alimentos saudáveis, uma política de incentivo à produção sem agrotóxicos deve existir. A consciência de nossa localização no espaço social e do que isso provoca exige que se pense para além de si mesmo, num nível mais coletivo”, justifica.
A antropóloga explica que crise é momento de revelação, espécie de ponto zero de observação em que se pode refletir sobre o que deu errado e criar um pensamento crítico sobre a importância que as mudanças têm para que exista algo melhor. Por outro lado, argumenta que transformações efetivas devam, obrigatoriamente, passar pela educação e pela consciência política.
“Não vejo possibilidade de, num futuro próximo, a maioria das pessoas converterem suas consciências do ponto de vista do consumo ambiental e ético. Isso demanda reflexividade, que a crise propicia, mas de forma insuficiente diante dos apelos inerentes à sociedade moderna, centrada em valores como indivíduo e status social. Uma educação para a cidadania poderia favorecer, em parte, a emergência desse debate”, coloca.
Tradução do manifesto assinado por 200 artistas e cientistas de diferentes nacionalidades e publicado pelo jornal francês Le Monde:
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