Autonomia do médico e Covid-19



Publicado em 07/04/2021 às 09:18.Atualizado em 05/12/2021 às 04:37.

Gustavo Cavalcanti (*)

Durante a já exaustiva pandemia do Covid-19, o Conselho Federal de Medicina – autarquia máxima da regulação e fiscalização da atividade médica no Brasil, com poderes para suspender e até cassar o registro de médicos – se manifestou defendendo a autonomia do profissional.

Lógico que os debates nas redes sociais se resumiram à possibilidade de os médicos prescreverem profilaxia ao Covid-19, pois com a “autonomia do médico”, ele agora poderia fazer o que bem entendesse, como se cada ato médico não viesse acompanhado de (muita) responsabilidade.

A autonomia do médico, no entanto, não foi inventada pelo CFM durante a pandemia contemporânea. É uma norma contida no primeiro Código de Ética Médica, que em 1929 se chamava Código de Moral Médica, abaixo:

Artigo 2º- Se na 1ª vis</CS><CS9>ita feita a um doente verificar o médico que a moléstia é contagiosa, poderá recusar a continuação de sua assistência (...):

Quando a norma diz que o médico poderá recusar, lá em 1929, ela está dizendo que ele não é obrigado a aceitar, que ele faz se quiser. Está dizendo que ele poderá recusar, mas fica implícito que ele poderá aceitar. Isto é conferir autonomia, dizer que diante das circunstâncias, quem decide é ele e não uma predeterminação qualquer.

Autonomia é um conceito que toca a filosofia, o direito, a bioética, a moral e a política, embora esta última pareça não querer tocar as demais. Ela tem como escopo conferir ao sujeito racional a possibilidade, mas antes disso a capacidade, de formar o seu próprio convencimento, e assim tomar uma decisão livre, a partir das informações que possui.

Quase 100 anos depois da promulgação deste primeiro código de 1929, no ano de 2019, um pouco antes do caos que se vive hoje, o CFM, revendo e modernizando a sua redação, cunhou na mesma linha de raciocínio o seguinte princípio:

VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

Ao colocar a autonomia do médico na qualidade de princípio, o CFM está dizendo que ela regerá todos os atos médicos, da primeira à última consulta, passando pelas prescrições, intervenções, tratamentos e protocolos sugeridos ao paciente.

E isso vale para o médico que trata o paciente com Covid-19, como para o que não o trata, para o que prescreve profilaxia como para o que não a prescreve.

De forma que quando o CFM se posiciona pela autonomia do médico, durante uma pandemia, ele não está criando qualquer novidade ou incentivando qualquer conduta por parte dos seus afiliados, pois este posicionamento existe no formato de norma desde 1929.

Quem ataca a autonomia do médico, ou o CFM, quando a difunde, provavelmente desconhece que a própria autarquia cuida de fiscalizar este exercício por parte do médico. Sendo responsável por fiscalizar e processar aqueles que causem dano ao paciente no uso desta autonomia, basta para tanto, ver o primeiro artigo do Código de Ética desenvolvido pelo CFM:

É vedado ao médico:

Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência. 

Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.

Qualquer ataque aos posicionamentos do CFM sobre a autonomia do médico será um ataque que desconsidera tudo o que os médicos, profissionais da linha de frente contra qualquer enfermidade, enfrentam diariamente na tentativa de salvar vidas.

Além de se verem sem alternativas para dirimir os graves efeitos das doenças nos organismos que necessitam de assistência, os médicos sabem que com a autonomia vem a responsabilidade.

Agora imagine você, no lugar destes profissionais, sem apoio logístico, infraestrutura precária, pacientes evoluindo ao óbito. O que mais querem? Lhes tirar a autonomia?

(*) Bacharel em Direito (Faculdade Mineira de Direito PUC-MG), Mestre em Direito e Sócio e Diretor Financeiro: Palova Amisses & Advogados Associados.

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