Perspectiva RacialUm espaço para mostrar como o racismo se revela no cotidiano, a fim de que toda a sociedade compreenda a importância de se engajar nessa luta. Andreia Pereira é doutora em Literatura (UnB), servidora pública federal, jornalista, professora, pesquisadora e palestrante.

A santa que se tornou negra

11/10/2021 às 20:48.
Atualizado em 05/12/2021 às 06:02

A representação da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, padroeira do Brasil, nem sempre foi como uma santa negra. Na passagem do século XIX para o século XX, a imagem “foi representada em algumas estampas impressas como uma virgem europeia, de pele branca”. É o que afirma o pesquisador Lourival dos Santos, autor do livro “O enegrecimento da Padroeira do Brasil: religião, racismo e identidade (1854-2004)”.

Na obra, o autor apresenta três imagens em que Nossa Senhora Aparecida é retratada como branca, mesmo tendo sido encontrada com um tom escuro, terracota, por causa do lodo e do tempo que ficou submersa no rio Paraíba do Sul, em São Paulo.

Estamos falando do Brasil de 1717, século XVIII, período em que foi registrada a presença de quase dois milhões de negros escravizados no país. No século seguinte, por causa da economia cafeeira, sobretudo no Vale do Paraíba e na região oeste de São Paulo, mais dois milhões de africanos desembarcariam no país. Há pesquisadores, inclusive, que sustentam a tese de que é muito provável que os pescadores que encontraram a escultura eram negros escravizados.

Esse contexto histórico explica por que a objeção em venerar uma santa negra não foi maior do que a devoção daqueles que se sentiam representados por ela. Nas palavras de Lourival dos Santos, Nossa Senhora Aparecida “possibilitou a inclusão dos negros que passaram a reivindicar um espaço maior do que apenas simbólico. Para os negros devotos, o ‘aparecimento’ de uma virgem negra serviu como um sinal para os descendentes de africanos e uma advertência aos senhores brancos”.

Além do Lourival dos Santos, outros estudiosos afirmam que a imagem, na verdade, é branca. Quando, em 1978, a escultura foi quebrada em pedacinhos, os restauradores teriam dito que o enegrecimento da santa ocorreu por ação do tempo e devido à fuligem e à fumaça impregnadas na escultura nos anos em que não foi bem conservada. Mesmo assim, a Igreja determinou pintá-la de preta.

Não se pode negar a participação da Igreja Católica na escravização da população negra, mas, no momento em que foi necessária a legitimação de que Nossa Senhora Aparecida deveria ser reconhecida como uma santa negra, a Igreja foi crucial na defesa dessa representação cultural e identitária do povo negro no Brasil. Manter Nossa Senhora Aparecida negra foi uma decisão que respeitou nossos ancestrais que encontraram na reverência à santa um refúgio para amenizar as dores da escravidão, acalentar a alma e para potencializar a luta e a esperança por um futuro livre.

Assim como Nossa Senhora Aparecida, eu e muitas pessoas negras tornamo-nos negras, uma vez que ser negro e negra neste país é, também, um processo de reconhecimento. Para os que creem, Nossa Senhora Aparecida ensina para o povo brasileiro que nós, pessoas negras, somos tão fortes como ela. Apesar de todas as violências a que estamos sujeitos em decorrência do racismo estrutural, a gente vive. O nosso milagre se chama resistência.

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