Perspectiva RacialUm espaço para mostrar como o racismo se revela no cotidiano, a fim de que toda a sociedade compreenda a importância de se engajar nessa luta. Andreia Pereira é doutora em Literatura (UnB), servidora pública federal, jornalista, professora, pesquisadora e palestrante.

Diga os seus privilégios que lhe direi o quão antirracista és

Publicado em 13/12/2022 às 18:45.

Rolar o feed, passear pelos perfis das redes sociais, principalmente, de influenciadores digitais e de pessoas públicas e/ou famosas pode ser um exercício para aprender como o racismo estrutural se manifesta. Apesar dos muitos exemplos, decidi falar aqui de um caso bem recente. O apresentador do Caldeirão, Marcos Mion, fez uma postagem apresentando a equipe responsável pelo programa, na TV Globo. As fotos não passaram ilesas, ainda bem. Uma enxurrada de comentários fez críticas à falta de diversidade racial.

Em um país em que mais de 50% da população é negra, não ter, ao menos, um profissional negro em uma equipe de 15 pessoas é um tapa na cara das pessoas que se intitulam antirracistas. A verdade, dura e cruel, é que a branquitude – enquanto grupo de pessoas brancas que herdaram os privilégios do sistema escravocrata e ainda continuam usufruindo as vantagens de ser branco no Brasil – não sabe o que é ser antirracista.

Enquanto pessoas brancas defenderem e usufruírem dos privilégios e das vantagens de ser branco numa sociedade estruturada pelo racismo, a inclusão e a diversidade nunca ocorrerão de fato. As empresas e as instituições, apenas, vão continuar maquiando o quadro de colaboradores, colocando um ou dois negros para dizer que estão atentas à pauta racial.

A falácia é, justamente, orquestrada por pessoas brancas, que indicam pessoas brancas, que selecionam pessoas brancas, que acreditam em pessoas brancas e que investem em pessoas brancas. Nesse lugar claramente hostil, o profissional negro, muitas vezes, é um enfeite, um adereço, que não ocupa o espaço de poder e de decisão.

Pensando de forma pragmática, elaborei um contexto para exemplificar como uma pessoa branca pode ser antirracista.  Para quem não sabe, existe no país a Academia Brasileira de Letras (ABL), uma instituição que reverencia personalidades ligadas ao cultivo da língua e da literatura nacional.

A ABL foi fundada em 1897 pelo escritor Machado de Assis. Em seus 125 anos de atuação, aproximadamente 300 pessoas, nomeadas de acadêmicos imortais, usufruíram dos privilégios de compor uma das cadeiras. E põe privilégio nisso! Segundo alguns portais de informação, cada membro recebe R$ 3 mil por mês, além de outros valores por comparecimentos a eventos semanais, como reuniões e chás.

Não encontrei no portal da ABL relatórios de prestação de contas, mas há notícias de que cada um dos 40 membros efetivos pode ganhar por mês mais de R$ 10 mil. Adivinhe, agora, quantas pessoas negras já passaram pela ABL. Além do cantor Gilberto Gil, recentemente empossado, apenas mais dois homens negros – sendo um deles o fundador, Machado de Assis – passaram pela instituição. Mulheres negras na ABL? Nenhuma!

Considerando o cenário da ABL, imagine: uma pessoa branca eleita recusa a vaga para ocupar uma das cadeiras da instituição para protestar contra a falta de diversidade racial ou para reivindicar a vaga para um membro negro. Eis que, nesse contexto imagético, estamos diante de uma pessoa singularmente antirracista. Eu acredito que haja no mundo algumas pessoas brancas antirracistas, dispostas a abdicar dos próprios privilégios em prol da população negra.

O príncipe britânico Harry pode estar nessa lista, seleta e preciosa, de seres humanos brancos, que, embora racistas, conseguem compreender e se conectar com os sentimentos de humilhação, tristeza, desamparo, inferioridade, medo, entre tantos outros, vivenciados por pessoas negras em sociedades estruturadas pelo sistema da escravidão. Depois de se casar com uma mulher negra, a ex-atriz Meghan Markle, o príncipe rompeu com a realeza britânica, abdicando dos compromissos oficiais e de determinados privilégios.

Ser antirracista, no entanto, não se resume a um ato, a uma ação isolada. Ser antirracista requer constância e comprometimento. Talvez, a vida seja muito breve para que a empatia seja aprimorada, tornando uma pessoa plenamente antirracista. Mas de uma coisa eu não tenho dúvidas: é a renúncia aos privilégios que torna a branquitude antirracista. É esse o caminho para que as futuras gerações de pessoas negras possam viver numa sociedade que, efetivamente, luta contra o racismo. Por enquanto, estamos apenas sobrevivendo.

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