EducaçãoLéo Miranda. Do \“Mundo Geográfico\” - YouTube Marcelo Batista. Do \“Aprendi com o Papai\” - YouTube

Uma diferença de algumas décadas

Publicado em 27/10/2022 às 06:00.

Marcelo Batista*

Ele é o único aluno da sala que usa somente papel e caneta. É o único que não pede parar tirar foto do quadro ou do Power Point e mal sabe utilizar muitas das redes sociais. Sempre que tem uma dúvida levanta a mão, discreta e educadamente e quando escuta a resposta sempre agradece. Ele tem o perfil muito parecido com o de outros alunos que quase anualmente encontro nas salas de aula, já considerados idosos. Esse aluno especificamente me disse, em uma de nossas conversas, que está tentando o Enem para não enlouquecer. Ficar em casa, segundo ele, o deixaria pirado. Ele mora sozinho e é aposentado. Ficaria entediado pela falta de atividades e não encontra mais espaço no mercado de trabalho.

Lembra um pouco a história da aluna que dei aula no ano passado, que tinha por volta de 80 anos. Com os filhos e alguns netos criados, ela levantava a mão e falava baixinho para tirar as dúvidas. Era necessário chegar bem perto para ouvir os seus sussurros interrogativos. Resolveu voltar a estudar, era apoiada pela família e, de classe baixa, conseguiu uma bolsa integral no cursinho de alguns amigos meus. Sem espaço no mercado de trabalho, muitos buscam o pré-vestibular como um refúgio para a solidão ou o sentimento de inutilidade que encontram dentro de casa.

Os demais alunos, no início, ficam chocados. Geralmente, quando encontram essas pessoas nos corredores pensam se tratar de algum funcionário ou alguém que foi buscar um filho - ou neto - no cursinho. Quando descobrem que é um aluno, assim como eles, sentem um pouco de vergonha pelo desespero em conseguir logo a tão sonhada aprovação no vestibular. Não faz sentido. Um outro ponto interessante é o respeito. De uma maneira geral os alunos entendem o ritmo diferente, muitas vezes mais lento para acompanhar a aula. Até estranham alguns comportamentos, como o fato de escreverem ao invés de usarem dispositivos digitais e a postura respeitosa em sala de aula, algo que ficou das outras gerações.

Confesso que para o professor não é fácil. A primeira sensação é de desconforto. Ensinar para alguém que tem muito mais sabedoria do que nós é no mínimo estranho. Depois dessa primeira sensação e com o tempo acabamos fazendo amizade, conversando sobre a família ou sobre as referências “da nossa época”, que muitas vezes os alunos não conseguem compreender: um programa de televisão da década de 80, 90 ou até do início dos anos 2000 ou uma música que fez sucesso, mas os alunos que têm por volta de 20 anos não conheceriam.

O mais engraçado desses alunos é que da mesma forma que eles aparecem, desaparecem, de repente. Aparentemente muitos acabam voltando novamente as atenções para a família ou já se dão por satisfeitos pelo tempo assistido de aula, ou simplesmente desistem de passar no vestibular. Os tempos são outros e a maneira de levar a vida também. A nós, resta a gratidão pelo momento que podemos aprender com quem pensa tão diferente dos alunos convencionais.

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