EducaçãoLéo Miranda. Do \“Mundo Geográfico\” - YouTube Marcelo Batista. Do \“Aprendi com o Papai\” - YouTube

Uma porta de singularidades

Publicado em 15/09/2022 às 15:03.

Marcelo Batista*

- R$ 22.000 na conta. Contas a pagar. Iptu e Ipva vencidos. Casa por reformar. Ansiedade. Depressão. Cobranças. Casamento em crise. Família ausente. Solidão. Mesmo assim o professor começa a aula.Depois de colocar a máscara do personagem, depois de se pintar como um palhaço, que de fato é, ele começa a aula.

Com TDAH não-diagnosticado, gastrite, família endividada, depressão e um pouco de boa vontade, uma menina é a que mais participa. Apesar da idade que já tem - por volta de  18 anos - responde tudo que é perguntado. Está sentadinha na primeira carteira e seus pés mal tocam o chão. Uma sonhadora. Mas não sabe que não vai passar, afinal, na sua condição financeira só conseguiria fazer o ensino superior em uma universidade federal e como teve toda sua formação na escola pública, não conseguirá. Mesmo sendo uma das melhores alunas da sala.

Com carro estacionado na garagem do cursinho, pais separados,  envolvidos em sistemas ilegais de lavagem de dinheiro, e uma boa dose de desprezo, um aluno apenas olha o professor dar aula. Não anota nada, mas quer fazer medicina: tradição familiar. Mesmo assim se interessa mais pelo Instagram do que no conteúdo dado em sala de aula e fica contando os minutos para ir lá fora fumar um vape antes de começar a próxima matéria. Ele não sabe, mas será aprovado no fim do ano em uma universidade particular, escrever “medgato” no braço e orgulhar toda uma geração.

A aula continua. O professor pensa em como vai fazer para pagar as contas até o fim do mês. Será que consegue algumas aulas extras? Talvez a venda do carro seja a única alternativa. Analisa também quando vai arrumar tempo para encontrar os familiares e amigos antigos. Está precisando bater um papo e tomar uma cerveja. Mas a aula e a vida continuam. Ele fala, no piloto  automático, enquanto pensa nas pendências da vida. É a décima aula com o mesmo conteúdo e não há nada de diferente. Nem o perfil dos alunos e nem as perguntas já previsíveis.

Enquanto isso, passa na porta da sala um dos encarregados pela limpeza do curso. Limpa o chão com carinho e dedicação, como faz há mais de 20 anos. Negro, mudo de nascença, não tem muito o que dizer. As contas estão atrasadas, mas tem o que comer, tem um trabalho. A família não vai tão bem assim, mas é maravilhosa e faz com que ele se encha de orgulho. Vai trabalhar de novo no fim de semana, mas pelo menos tem um emprego. A saúde não anda tão bem, mas com a idade que ele tem…

O sinal toca e todos eles:  o professor, o aluno, a aluna e o faxineiro saem pela mesma porta, algo que acontecerá todos dias, até o final do ano. O professor não se despede, sabe que sempre vai encontrá-los novamente, de forma particular ou genética, como nos últimos 19 anos de trabalho.

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