Simone DemolinariPsicanalista com Mestrado e dissertação em Anomalias Comportamentais, apresentadora na 102,9 e 98 FM

Masoquismo estrutural

Publicado em 12/10/2023 às 06:00.

A mente humana se envereda por caminhos tão diversos que podem resultar em comportamentos difíceis de serem compreendidos. Há algum tempo venho refletindo sobre a existência de um masoquismo estrutural presente em nosso dia a dia, que de tão enraizado é, por vezes, imperceptível.

O termo masoquismo surgiu a partir do romance escrito por Sacher Masoch, que narrava o prazer obtido por um homem às custas do sofrimento e humilhações causadas a uma mulher. Dessa forma o termo passou a ser usado para designar o comportamento de uma pessoa que sente prazer provocando ou proporcionando a si mesmo a dor. Porém a palavra ficou restritamente associada a práticas sexuais e passou a designar a evidência de transtornos, parafilias e perversões. Mas o que não é tão evidente assim é aquele prazer no sofrimento escondido no nosso dia a dia, escamoteado através de condutas rotineiras. 

Se você perguntar a uma pessoa se ela se sente feliz proporcionando sofrimento a si mesma, ela provavelmente dirá que não –  afinal, dificilmente alguém admitirá conscientemente que gosta de sofrer, mas não ter consciência do problema não significa que ele não exista. Aliás, a maioria das nossas condutas são impulsionadas pelo inconsciente. 

Somos, desde novos, ensinados a competir, buscar posição de destaque, resistir à dor, tolerar situações de sofrimento, administrar problemas, etc. Com isso, o sofrimento passou a ser algo muito familiar; um velho conhecido que sabemos como manejar nosso emocional para combatê-lo, e, assim, passamos boa parte da nossa vida em estado de luta - nos formamos ótimos na luta e péssimos no desfrute. Um simples exemplo é observar como conseguimos dedicar um fim de semana em prol de um trabalho e nos sentimos irresponsáveis ao tirarmos uma tarde livre em meio a um dia útil. Essas e outras coisas demonstram nossa maior capacidade em suportar a dor e um desconforto ao fazermos algo que é de nosso direito. Parece que existe dentro de nós um registro: “eu não mereço ser feliz”. Embora não seja o que a nossa boca diz, é assim que nos comportamos, numa auto cobrança acirrada seguida de auto punição e pouca auto condescendência. 

Outro exemplo é a preocupação. Pessoas perdem noite de sono, se estressam imaginando um cenário catastrófico, dedicam horas e horas do dia e da vida se enveredando no oceano de possibilidades negativas, jogam toxinas no corpo fruto do pensamento caótico, fazem um verdadeiro pacto com a dor e parecem se sentir muito bem com isso, pois frente à possibilidade de parar de se preocupar, justificam que não conseguem fazer isso. Ou seja, o sofrimento é familiar; se ver livre dele, não. 

Percebemos um prazer na dor também em relacionamentos tóxicos baseados em brigas, ciúmes, controle, onde a proposta de continuar se mostra muito mais possível do que a de se afastar, chegando à clássica dependência emocional que é um adoecimento que deriva do sofrimento de gostar de quem agride. Sabem como permanecer na dor e não sabem como sair dela. 

Vemos isso também nas relações de amizade onde um lado explora e o outro atende prontamente a exploração, numa nítida subserviência. 

O masoquista, mesmo sofrendo, não abre mão de quem ou do que o maltrata; ao contrário, se considera “forte” por aguentar tal situação e ainda afirma categoricamente: “tá ruim, mas tá bom”. Eis o masoquismo: prazer na dor. 

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