Simone DemolinariPsicanalista com Mestrado e dissertação em Anomalias Comportamentais, apresentadora na 102,9 e 98 FM

Serve, mas machuca

Publicado em 22/02/2024 às 09:59.Atualizado em 22/02/2024 às 15:24.

Se murcharmos a barriga, encolhermos um pouco o pé, respirarmos fundo, a calça apertada entra, o sapato menor serve. Se fizermos força, tudo aquilo que não nos cabe, acaba entrando. Aos olhos de quem vê, a composição se apresenta perfeita, o mesmo não pode ser dito por quem usa. Como diz o ditado: “Só quem sente sabe onde o calo machuca”.

A analogia da roupa é cabível para o campo das relações. E não me refiro a concessões e negociações típicas de uma boa convivência. Me refiro a algo que não nos serve e mesmo assim forçamos para entrar. 

Este é o exemplo de Raquel. Advogada, 43 anos, casada desde os 30 e com um total de 15 anos de relacionamento desde o namoro. Desde o começo sentiu que se não abrisse mão de algumas condutas, como por exemplo, encontrar suas amigas, a relação poderia não ir para frente. Não que seu marido expressasse verbalmente tal proibição. Ao contrário, nada de cunho “pode”, “não pode”, era expressamente dito, o que dava a impressão de que tudo podia. Mas bastava ele reprovar algo para que o clima mudasse. 

Interessante observar que a conduta proibitiva nem sempre ocorre em palavras, geralmente surge em condutas de silêncio, caras amarradas, posturas emburradas, falas lacônicas. Um comportamento perverso que não verbaliza, mas grita mais alto que palavras.

Voltando ao caso da Raquel, como muitas vezes o marido se comportava assim, ela foi se moldando para não contrariá-lo. Ao ser questionada sobre o porquê de estar limitando a vida por causa dele, ela se defendeu: não faço por ele, faço por mim, para não sofrer as consequências. Um autoengano que tentava amenizar a castração sofrida. Ela também alegava que valia a pena se privar dos seus prazeres em prol da relação, pois havia muita afinidade entre eles. 

Aqui uma pausa para analisar com mais cautela os tipos de afinidade: as básicas e as de conduta. Gostar das mesmas músicas, ter um estilo de vida parecido, gostar de viajar, rir das mesmas bobagens, ter um gosto e um senso de humor parecidos, os mesmos planos de vida a longo prazo, tudo isso é um ingrediente muito poderoso que, inclusive, na fase do encantamento proporciona a sensação de se tratar da alma gêmea. Porém, as afinidades de conduta são as que dão longevidade e saúde à relação, são elas: disposição para dialogar, capacidade para fazer concessões, respeito à individualidade, conduta confiável a não proporcionar insegurança, respeito aos combinados, delicadeza no trato diário, capacidade de aprender com os erros e não reincidir, se responsabilizar pelos atos, estar atento ao bem-estar do outro (isso implica em recuar mediante alguma conduta que pode ferir). Essas são as afinidades de conduta que nutrem a admiração –a matéria-prima do amor. 

No caso de Raquel, eles só tinham as de base, pois nas de conduta percebia-se claramente que só ela estava disposta a ceder e cortar de si para não gerar mal-estar. Já ele, apesar de se considerar extremamente flexível (a maioria das pessoas egoístas tem dificuldade em fazer uma real autocrítica), não estava muito disposto a abrir mão de si. 

Aos quatro anos de relação veio o primeiro filho, depois o segundo. Na fotografia via-se uma família feliz, um relacionamento saudável e um modelo de sucesso. Na vida íntima, Raquel distanciou-se tanto de si para não desagradar o marido que não conseguia discernir o que era certo ou errado e, mesmo sendo impecável na dinâmica familiar, seguia recebendo críticas constantes do marido. 

Nossa essência é como se fosse nosso “molde”. Quando nos esprememos para caber no molde do outro, além de um ato de irresponsabilidade para conosco, nos dói muito –tal como um sapato apertado: serve, mas machuca. Por outro lado, quando os moldes se assemelham, a convivência é fluida, leve e com diferenças ajustáveis. É como diz o ditado: se precisar forçar é porque não é do nosso tamanho. Isso se aplica a anéis, sapatos e principalmente pessoas.

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