Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

A agonia e a autonomia

22/04/2021 às 14:27.
Atualizado em 05/12/2021 às 04:45

 Ao assumir a direção clínica de uma casa de repouso nos Estados Unidos, o jovem médico Bill Thomas se viu em um novo desafio, que era trabalhar com idosos, muitos deles acamados ou que viviam em cadeiras de rodas em boa parte do seu tempo.

 Ele percebeu que as atividades desenvolvidas pelos funcionários não eram nada estimulantes e que os voluntários que visitavam os internos faziam algumas ações que eram até agradáveis. Mas sem a percepção do que os idosos gostavam realmente de fazer, parte do esforço parecia inútil.

 Isso é algo que qualquer pessoa, ao visitar uma Instituição de Longa Permanência para Idosos, deve se atentar: não é simplesmente ir e achar que o que for ofertado deva ser aceito por eles, sem reclamarem ou negarem, felizes da vida.

 Caso o grupo queira uma efetividade, deve buscar entender a vida daquelas pessoas, saber pelo que passaram, quem elas foram, quem são, o que gostam, atentando sempre que essas primeiras abordagens, para se iniciar um trabalho, devem ser cuidadosas e bem alinhadas, pois há muitas dores e traumas não resolvidos em cada história de vida - o que, digamos de passagem, não se limita às casas de repouso, não.

Uma mãe, um pai ou os avós idosos, com autonomia, devem ser consultados por nós, filhos e netos, sobre o que eles gostam e preferem. Ao tirar a sua liberdade, vamos ceifando-lhes o interesse em viver, o sentido de tudo que fizeram e poderiam fazer

 Em muitas visitas natalinas, por exemplo, já vi voluntários vestindo-lhes gorros de Papai Noel a contragosto do idoso, que ainda tinha que ouvir: “mas a gente teve tanto trabalho para conseguir essas ‘toucas’ e você vai fazer esse desgosto?”.

 Uma das várias lições que tive no voluntariado me foi ensinada pelo professor Celso Vasconcellos, Doutor em Educação, quando em sua biblioteca ele pegou um livro e leu para mim um trecho de Viktor Frankl: “tudo pode ser tirado de uma pessoa, exceto uma coisa: a liberdade de escolher sua atitude em qualquer circunstância da vida”.

 Essa frase é linda e ressalta o que a gente tem que buscar valorizar, em nós mesmos e para o outro: autonomia, que pode ser entendida como “o governo de si próprio”, ou como disse o filósofo Luiz Felipe Pondé, entender que “eu sou a causa da minha ação”.

 Reflito muito sobre a frase de Frankl, ainda mais sendo ele um sobrevivente de Auschwitz, pois há situações extremas que ainda penso se há muitas escolhas a serem feitas. Foi aí que o professor Celso me disse, mais ou menos dessa forma: quando você estiver na rua, entregando lanche para as pessoas que ali estão, não dê o pão como se fosse uma obrigação do outro receber. Pergunte a ele: “você aceita um pão?”, dando-lhe a dignidade de escolher aceitar ou negar.

 Voltando para a história do jovem médico, mas alinhando com tudo isso que foi escrito, ele entendeu que alguns idosos dependiam fisicamente de alguém, mas tinham autonomia, pensavam por si próprios, mesmo tendo o corpo – ou partes dele – inerte. Vale repetir: essa autonomia está muito ligada à dignidade.

 Uma mãe, um pai ou os avós idosos, com autonomia, devem ser consultados por nós, filhos e netos, sobre o que eles gostam e preferem. Ao tirar a sua liberdade, vamos ceifando-lhes o interesse em viver, o sentido de tudo que fizeram e poderiam fazer. E isso fazemos sem nos aperceber, muitas vezes, do quanto sufocamos nossos pais.

 Albert Camus tem um livro chamado “O mito de Sísifo”, em que conta a história desse rei, condenado pelos deuses, inclusive por ter driblado a morte, a carregar rotineiramente uma pedra até o alto de uma montanha. A pedra rolava ladeira abaixo toda vez que Sísifo alcançava o topo, mostrando uma vida sem sentido, repetitiva. Camus sugere que até Sísifo, para dar uma resposta às agruras da vida, deveria inventar maneiras diferentes de fazer o trabalho a que foi sentenciado.

 Para refletir um pouco mais sobre tudo isso, fica uma frase de Goethe: “o que passou, passou. Mas o que passou luzindo, resplandecerá para sempre”.

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