Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

A beleza do imperfeito

Publicado em 19/09/2024 às 17:11.

A reunião de professores e artistas mineiros para pensarem em uma exposição de obras desenvolvidas dentro das unidades prisionais e Apacs partiu de um convite da Angelina Gonçalves, do Centro de Arte Popular, da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais. Numa primeira reunião, ela explicou que o espaço da arte popular tinha tudo a ver com aquilo que era produzido no cárcere, com recursos laborais bem limitados, o que leva as pessoas a recorrerem à criatividade para que a arte floresça.

Assim, o Conselho da Comunidade da Comarca de Igarapé abraçou a ideia, uma vez que já desenvolve ações de educação nas unidades de São Joaquim de Bicas. O material usado na produção do artesanato viria do conselho, mas era preciso pensar em oficinas que pudessem direcionar as criações para a finalidade da exposição. Aí entra a equipe de curadoria coletiva, formada pelas artistas e educadoras Angelita Mercês, Helena Macedo, Luhh Dandara, Marcella Mafra, Mari Flecha, Odette Castro, Tê Araújo e Varda Kendler.

No primeiro dia de oficina no Presídio de São Joaquim de Bicas 1, todos os presos da ala queriam participar. Eram 160. Tivemos que selecionar um por cela para aprender e ensinar aos demais. No pátio, uma professora e 10 homens. A aula era de crochê. As agulhas eram de cabo de escova de dentre, afiada por eles, já que as agulhas tradicionais não entram. Odette Castro trouxe toda a bagagem afetiva do seu projeto “Uma flor por uma dor” para que aqueles homens fizessem flores de cores e tamanhos diversos, livremente. Nisso, a Apac de Betim também nos ajudou. Na varanda da sala de exposição, estas flores formam painéis que são interrompidos em determinado momento, com flores espaçadas, perdendo-se ao longo do parapeito da varanda, simbolizando os que vão embora, que se desgarram. Os que se encontram ou se perdem.

Numa outra oficina, de pompons e macramês, a artista Varda Kendler, da “Pompom de Crê”, parou em pé diante de uma a uma daquelas dez celas de uma ala, de onde ela ouvia: essa tesoura não corta, pode deixar que a gente corta na gia (lâmina de barbear); me dá aqui que vou cortar na grade. Pequenos pedaços de linha, vários pedaços, juntando uns cem. Depois de amarrados, nasce um pompom das mãos alegres de quem nunca tinha feito um igual. Cada um diferente do outro. Eles foram para as janelas da sala de exposição, como se fossem as grades daquele ambiente. Simbolizam o aprisionamento, mas podem ser rompidos. Não são grades que prendem para sempre. Numa janela, pompons mais coloridos, com pitadas de cinza, remetendo à alegria de estar fora daquele ambiente, mas lembrando que nem tudo será fácil. Na outra janela, mais pompons cinzas do que de outras cores, demonstrando que ali dentro há dores, mas há vida, por isso os pompons coloridos.

A Tê Araújo, especialista em processos criativos, ficou com a tangibilização das histórias dos custodiados da Penitenciária Prof. Jason Albergaria, uma unidade que atende o público LGBT. Durante a pandemia, em 2021, realizamos diversos projetos por lá. O que a Tê fez foi, junto à artista Regina Brito, organizar as cartas escritas àquela época, num concurso de redação com o tema: “carta para a criança que um dia eu fui”. Histórias de vida antes do cárcere. E a artista Ana Dolabela criou o dicionário a partir de algumas palavras usadas no sistema. Tê Araújo ajudou, também, a idealizar um espaço onde desenhos feitos pelas presas do presídio feminino Estevão Pinto deram vida a estampas de roupas de moda, da “Libertese”, administrada pela Marcella Mafra.

A publicitária Mari Flecha, da “Bendita Parede”, usou um trabalho realizado junto a mais de mil presos, que expressaram seu sentimento em relação a temas como “amor de mãe” e “preconceito”, através de desenhos que, selecionados, compõem um ambiente. Com a Luhh Dandara, arte-educadora e criadora da “Preta Milionária”, montaram um ambiente que simula a parede de uma cela, com pichações feitas pelos presos em grandes placas de papel preto, refletindo uma forma de comunicação bem peculiar.  

Três ambientes foram organizados pelo artista mineiro Márcio Fonseca: uma camisa vermelha presa à parede, com o poema “Os ninguéns”, do Eduardo Galeano, colado no peito. Ali na frente, livros que salvam, tendo como base a constituição; uma parede que simboliza a fé, com quadros de santos feitos no presídio de São Joaquim de Bicas 2 e, por fim, uma representação de uma cama numa cela, com camisas vermelhas penduradas e dois cabides vazios. Será o fim das prisões, como diz a Ângela Davis? Ou a ideia equivocada de que se tem dois, cabem mais?

Ao centro, o espaço dedicado à sobrevivência. Como os custodiados criam no dia a dia a sua rotina.

Na entrada da exposição, tsurus feitos pelos presos para serem entregues a idosos institucionalizados. E a vitrine, que coloca a gente pra refletir, foi criada pela Mary Arantes, uma artista de sensibilidade sem igual. Com correntes feitas de macramê, ensinadas pela Varda, pedimos à Mary que representasse um intestino, simbolizando algo difícil de digerir. Ela usou as correntes feitas pelos presos que, aos meus olhos, simulam um batimento cardíaco, pulsando a vida, celebrando novas vidas, correntes no meio de todos nós.

A exposição “A beleza do imperfeito” fica no Centro de Arte Popular, na Rua Gonçalves Dias, 1608, Lourdes, de 19/09 a 20/10/24. Entrada Gratuita.

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