Quando eu comecei a fazer trabalhos voluntários com crianças e adolescentes em casas de acolhimento, ficava pensando como se sentiam aqueles meninos e meninas que foram tirados do convívio dos pais, por iniciativa judicial, para protegê-los de abusos, violências e maus-tratos. Alguns outros estavam ali pela drogatização das famílias, que não tinham condições de criar os seus filhos e a saída mais viável seria um abrigamento e, talvez, a adoção por uma nova família.
Em casas que atendem crianças de até 12 anos, a relação com eles é bem diferente do que em instituições onde moram adolescentes, pelo contexto de entendimento mesmo, uma vez que os mais velhos já têm mais consciência das situações vividas dentro de casa, das relações familiares fragilizadas, dentre outras questões.
Os mais novos já se dedicam mais às atividades que levamos para eles e gostam de interagir. O abraço, o colo, ainda é muito valorizado pelos menores, que estão em busca de atenção, de afeto, de cuidado e de uma presença de pessoas em que possam confiar. E confiar significa, muitas vezes, não ir embora de vez.
Todas as ações do Tio Flávio Cultural são pautadas pelo entendimento de que ninguém é obrigado a se voluntariar, porém, uma vez que foi tomada a decisão de iniciar-se neste movimento, alguém já passa a nos esperar e a contar com a nossa visita. Gosto muito de várias passagens do livro “O pequeno príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry. Em uma delas ele diz: “Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieto e agitado: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração.”
Um dia, chegando em uma visita, uma criança de 9 anos chorava. Já tinha quebrado a porta do guarda-roupas, um espelho no banheiro, o que o fez cortar um pouco a mão, e ainda fazia “birras” com gritos muito altos. Ele foi colocado de castigo e não participaria da ação. Uma das educadoras falou que se ele conseguisse se comportar poderia ir para a sala, no que ele concordou. A brincadeira já tinha começado e ele ficou de longe observando.
Uma voluntária se aproximou, como quem não quisesse nada e perguntou o que era aquele machucado na mão. Ele explicou. Ali foi o chamado para que o diálogo tivesse início.
Sempre gostei da fala da dra. Nise da Silveira, que dizia: “Eu não acredito em cura pela violência”. Isso pauta muito o que fazemos, em diversas áreas sociais em que atuamos. E a violência não se dá só no ato de agredir física, moral, verbal, psicologicamente alguém. É uma grande violência tornar invisível a dor do outro.
Aquela criança disse à nossa voluntária que a mãe o batia, saía de casa e deixava ele sozinho, que perto da casa dele tinha muitos foguetes e que ele sempre estava em casa, sem ninguém, quando os foguetes pipocavam lá fora. Ele tinha muito medo, mas quando falava isso com a mãe, ele apanhava.
Há poucos dias, segundo ele, uns policiais o tiraram de sua casa e o levaram para aquele abrigo. A revolta se dava porque ele queria voltar para a mãe. Achei esse relato feito para a voluntária algo bem real, ao mesmo tempo que simbólico. O voltar para a mãe não é só sair da casa de acolhimento e retornar para o lugar onde ele morava. Era, talvez, recomeçar, com a mãe, mas sem a dor.
Se puder, assista ao filme “Além da vida”, em que três pessoas são tocadas pela morte de maneiras diferentes. Mas atente-se ao caso dos irmãos gêmeos e sua mãe, dependente química. Eles veem a mãe chegando em casa drogada, mas fazem malabarismos quando a assistente social bate à porta para avaliar se aquela mãe dava conta de continuar com a guarda dos dois. Eles queriam ficar, porque ela é a mãe, a referência que eles tinham de um cuidado que nem existia da forma que conhecemos, mas que era percebido por eles como aquilo que podemos chamar de amor.
Fiz grandes amigos dentre os adolescentes que viveram e saíram dos abrigos. Tenho contato com alguns e os respeito tanto, inclusive pela busca contínua, e nada fácil, de se reconstruírem, muitas vezes sozinhos.