Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

A caminhada tem que continuar

Publicado em 07/07/2023 às 06:00.

Em conversa entre duas colegas, uma passa à outra o meu contato, para que ajudasse a pensar em algumas atividades que pudessem melhorar a situação das pessoas na cidade onde ela atuava. Agendei tempos depois e fui, de ônibus, numa viagem próxima que se torna longa pelo tanto de rodoviária que a linha atende.

Ao chegar, um doce sorriso de gratidão vem em minha direção. A cidade estava fria e aquele encontro serviu para aquecer a minha esperança na justiça, de verdade. No meio do caminho, na cidade histórica de Mariana, a juíza da vara de execuções penais, que conduzia o carro a caminho da unidade prisional, que fica sitiada por prédios no centro da cidade, me explicava que precisávamos pensar em alternativas para que o cumprimento de pena daqueles homens privados de liberdade pudesse ter uma finalidade educativa. Eles estão ali e a gente tem acesso a eles. É uma pena que deve ser cumprida e, então, que este momento fosse bem usado, como uma possibilidade real de reflexão e de mudança.

Pode parecer devaneio utópico, mas sabemos que há algumas opções para a situação posta. Uma delas seria a mais cômoda: nada pode ser feito, “deixa ver no que vai dar”. Outra seria a de tentar, com aquilo que temos, fazer o que pode ser feito.

Em três celas, expliquei a minha ideia, que foi aceita por todos. Temos pensado muito em dar um sentido àquilo que fazemos dentro das unidades prisionais e uma delas é trabalhar a solidariedade, com ações realizadas no cárcere e que impactem instituições sociais que atendam pessoas com paralisia cerebral, idosos, pessoas em tratamento de enfermidades, alunos de escolas públicas, dentre outros. Temos trabalhado a educação - em seu sentido amplo e não o seu uso restrito ao ambiente escolar - como possibilidade de reflexão da realidade e criação de perspectivas.

Os projetos que são desenvolvidos nas unidades prisionais precisam ter a adesão do judiciário. Nós fomos além: temos conversado com juízes, promotores e defensores públicos, que são os atores da execução penal, para que eles entendam o teor e o objetivo do trabalho. Dizer que é fácil sensibilizar todas as partes, vou ter que ser sincero e admitir que não. Uma pode ser mais difícil que outras.

Os projetos foram batizados, em sua maioria, com o nome ou uma referência a mulheres que quebraram paradigmas e deixaram um legado. À escrita da história de vida e do “desenho” de uma perspectiva pós-cárcere, chamamos de “Diários de uma vida, num quarto de despejo”, em alusão e homenagem à negra, catadora de lixo, favelada e escritora Carolina Maria de Jesus, falecida em 1977, que perguntou em uma das suas obras: “e haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer?”

Ao projeto que estimula a criatividade, com o uso de redação, poesia, exercícios de autoconhecimento, cartas, desenho e história em quadrinhos, chamamos de Nise. Uma homenagem à psiquiatra alagoana, Dra. Nise da Silveira, que acolheu aos loucos desprezados pela sociedade e por seus colegas, nos corredores frios dos manicômios. É dela a frase: “Eu não acredito em cura pela violência”.

Antonieta de Barros, uma das primeiras mulheres a ser eleita para uma assembleia legislativa no Brasil e a primeira negra a assumir um mandato popular, lutou pela educação e foi de sua autoria a lei que oficializou o dia 15 de outubro como o Dia dos Professores. Ela empresta o nome ao projeto que estimula os privados de liberdade a refletirem sobre o papel da escola como uma esfera de proteção do indivíduo e no desenvolvimento de crianças e adolescentes.

Assim, eles relatam importantes fatos em que a escola foi decisiva em suas vidas. Este projeto foi criado quando vi um adolescente, de uns 16 a 17 anos, em medida socioeducativa, pegar um livro do Valdeci Ferreira e soletrar espontaneamente, porém com muita dificuldade, o título da obra: “Juntando os cacos”. Ainda há o “Liberta Minas”, o “Diário da Liberdade”, o “FutSol” e o “Faz Bem”.

Temos muito que evoluir como sociedade, mas não acredito que sejamos uma humanidade perdida. Há de colocar em lugar de destaque a cultura e a educação, combater a violência e a pobreza, buscar equidade de gênero e raça e admitir que a desigualdade social e política - de direitos mesmo, apesar das garantias constitucionais - ainda é abismal.

Num recente encontro de juízes, promotores e defensores públicos na cidade de Frutal, cidade que possui um complexo de Apacs, ouvi depoimentos que me quitaram uma névoa que me ocultava a esperança. Uma juíza que atende as cidades de Lagoa da Prata e Serro me aborda falando do interesse em receber-me nas comarcas dela. A juíza de Visconde do Rio Branco já foi mais direta: “você tem que ir lá”. Abracei a juíza de Alfenas, que já abraça nossas causas, cumprimentei o de Frutal, Manhumirim, o de Conceição das Alagoas e outros tantos, que somados aos demais operadores do direito deram sinal de que é preciso agir.

Mas, para deleite meu, foi da Desembargadora Márcia Milanez, a humanidade e solidariedade traduzidas em gente, que recebi um beijo na testa, como forma de gratidão e respeito. Um aceno necessário que de que a gente precisa continuar a caminhada.

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