A Natalia Dornellas é aquele tipo de pessoa que você tem que dedicar um tempo sem pressa para conversar, pois o seu olhar apurado para algumas situações a faz enxergar histórias que ninguém via, ou não queria ver, mas que existiam e resistiam em tanta gente e que sobrevivem ao tempo.
Nós todos somos muito mais do que qualquer pessoa consiga ver. Nós somos histórias, que ao serem contadas, por quem vive ou por quem observa, elas viram memórias e, em muitos casos, ensinam, aproximam, transformam.
E a jornalista Natália Dornellas sabe amplificar a voz de muita gente. E ela ama os idosos. Um dia até brincou comigo, dizendo que em conversa com a antropóloga Miriam Goldenberg, ouviu que ela não confia em ninguém com menos de 80, parodiando a música do Marcos Valle, que diz: “não confie em ninguém com mais de 30 anos”.
Natália não só confia, como convive com pessoas idosas dos 80, 90 anos, tendo-as como amigas e, ainda, buscando, onde quer que esteja, pessoas e seus atos de movimento que, como num “efeito borboleta”, parecem pequenos e insignificantes, mas que se desdobram numa coreografia do viver, mudando, ao seu jeito, o que está ao redor.
“Só fica velho quem viveu”, “Velho não é xingamento”, “Velho é lindo” e outros tantos mantras estão no glossário da Avosidade, organização da sociedade civil que se utiliza da comunicação positiva e da cultura para promover a valorização dos idosos. Fundada em novembro de 2022, a organização mantém ações voltadas ao letramento e à valorização de quem já viveu bastante, tendo as redes sociais como meio. Neste ano de 2024, a proposta é furar a bolha, fazer-se presente para além das redes, e ganhar o grande público com ações como a participação na CASACOR Minas, cujo espaço imersivo é um afago na memória afetiva, uma viagem onírica às casas de nossos avós, como detalha a Natalia.
A jornalista lembra que “Gostamos de dizer que o ambiente da Avosidade na CASACOR Minas tem um percurso que se assemelha à vida”.
Tudo começa no jardim da frente, um jardim pensando para trazer a mistura das plantas que as avós sempre fizeram. Nesse mix de folhagens, assinado pelo paisagista Felipe Fontes, não falta a cheflera, antúrios brancos e pretos, samambaias, muitas samambaias, e espadas de São Jorge, para dar proteção.
No segundo momento, o visitante se depara com uma grande instalação têxtil de 52m2 de crochê, trabalho realizado durante três meses pela artista Ana Vaz. A inspiração são as toalhinhas eternizadas pelas avós.
Protagonista por sua magnitude, a grande colcha serve como tela para os vídeos criados por Marcelo Belém. O videomaker visitou as residências de três personagens 80+, Lia, Helena e Miura, e traduziu suas vidas numa produção necessária. O material, que fica em looping no ambiente, tem trilha sonora criada pelo ator Pablo Bertola e pelo maestro Pitágoras Silveira, do grupo Ponto de Partida.
A partir daí fica fácil perceber que o objetivo da Avosidade é resgatar grande parte destas lembranças que são guardadas em nossa memória. Às vezes tão bem escondidas, que encontrá-las causa emoção.
Depois de se enebriar com as vozes, as imagens e as lembranças, o visitante chega a uma espécie de altar, onde encontra uma cadeira e mesinha repleta de vasos de cerâmica. Este é o espaço da colheita, depois de uma longa caminhada.
Os vasos foram criados pelo Ateliê de Cerâmica e enfeitam o cantinho mais fotografado da mostra. Ao final, com toda a potência das cores e do detalhismo do jovem artista Pé de Pavão, codinome de Gustavo Brito, uma grande tela nos lembra da importância de honrar o tempo.
A CASACOR Minas fica até o dia 15 de setembro no Espaço 356, no bairro Olhos D´Água, em Belo Horizonte.
Conversando com a Natália sobre a ideia de levar o carinho dos avós e a Avosidade para mais pessoas terem acesso, fiquei pensando nas lembranças que carrego da minha avó materna, uma mãe cuidadosa e cozinheira de mão cheia, mas não só isso. Uma mulher que foi fiel à sua crença, que muitas vezes se anulou em função de um homem, tentando não deixar faltar nada para os seus filhos, que cresciam vendo-a na labuta doméstica, cansada de tantos afazeres, mas que não abria mão de ser amável, protetora e visionária.
Pensei nisso tão recentemente, pois ela era uma mulher que passou por tantas adversidades, dividindo o mesmo teto com um homem de outros tetos.
O “certo” não seria que ela saísse de casa e levasse consigo os três filhos ainda crianças? Mas ela, sabiamente, fez por onde ser livre como podia. Assim, quando meu avô chegava, e os filhos estavam estudando, ela ia para o quintal cortar lenha. Talvez ali ela cortasse suas amarras aos poucos e com os golpes da finca, ia rompendo sua dor. O ato revolucionário foi não se curvar, apesar de não se esquivar das tarefas dedicadas à mulher naquela época. Julgar uma mulher que sai e volta, sem conhecer contextos, é leviano. Julgar uma mulher que fica, mais leviano ainda.
Minha avó foi visionária por ter construído a felicidade onde tinha um terreno fértil para o caos. Criou os filhos para serem independentes e se libertou com a liberdade deles e dos que vieram por eles.