Um dia, conversando com um jovem, ele me disse que queria que eu fizesse contato com a mãe dele, pois ela precisava de ajuda. Imediatamente perguntei que tipo de ajuda e ele me explicou, com tanta naturalidade, mas com dor nos olhos e na fala, algo que para mim era fora de cogitação até então.
O jovem me disse que a mãe dele era usuária de cocaína e que sempre tinha crises, recaídas e precisava se tratar, mas afirmava que “clínica e médico” não vão adiantar nada e, por isso, não aceitava o tratamento.
Naquele momento em que ele contava sobre a sua mãe que eu projetei mentalmente a minha, imaginando-a amável e cuidadosa, sempre muito sóbria e responsável. Tive que tomar muito cuidado para não cair no erro de achar que por ser dependente química aquela mãe não seria uma boa pessoa, não dedicaria afeto ao seu filho.
Ele me dizia que ela sempre foi boa mãe, trabalhadora, mas a droga sempre foi presente na vida deles, fazendo com que ele e os irmãos cuidassem mais dela do que o contrário, como ele mesmo relatava.
Nisso tudo, ao ouvir aquela história, a minha maior dificuldade foi desconstruir a figura da mãe que eu tinha na minha cabeça para que pudesse encaixar uma outra, bem diferente da minha, mas que era mãe também. Ali eu vivi um choque da desconstrução, da visão que eu sempre tive de uma mãe, que eu achava ser igual para todos.
Lembro de sempre indicar aos meus alunos o filme “Além da vida”, em que numa das cenas, dois irmãos gêmeos, ainda pré-adolescentes, são acordados por uma profissional do serviço social que iria avaliar se a mãe deles estaria em condições de manter a guarda dos filhos ou se eles teriam, para a sua proteção, que ser encaminhados a alguma unidade de abrigamento.
Ao avistarem aquela profissional pela janela, os meninos subiram correndo, foram até a cama onde a mãe dormia, vestiram-na com uma blusa de manga comprida para tampar as marcas das picadas da droga, colocaram em suas mãos sacolas com produtos que eles pegaram nos armários e puseram a mãe para fora de casa pela porta dos fundos.
A profissional entra, pergunta pela mãe, eles explicam que ela havia ido ao supermercado, mas já deveria estar de volta em minutos. Um tempinho depois ela entra pela porta dianteira e concretiza esta farsa, que mantém os meninos sob sua guarda, para a felicidade dos três.
Uma mãe drogada, mas ainda mãe. Os gêmeos lutaram para que não os separassem dela, para não a abandonarem, pois ela era a única referência de afeto que eles tinham. Afeto este que não era dispensado por aquela mãe, só era interrompido pela alucinação das drogas.
Eu fiquei imaginando o quanto deve ser doloroso ter a mãe ou o pai no vício. O quanto deve ser doentio para toda a família ter alguém dependente químico.
Esses dias um jovem me mandou uma mensagem. Apesar de estar escrita de forma privada numa rede social, aquele recado gritava, berrava por ajuda. Ele me dizia que se casou, teve uma filha, mas está perdendo tudo por ser um dependente químico. E a sequência da mensagem foi: “me ajuda, Tio Flávio. Sozinho eu não consigo”.
Quanta dor estampada ali.
Quando eu organizava um livro que conta várias histórias vividas no voluntariado, escritas por diversas instituições, eu conversava com uma amiga de um projeto social que atua com pessoa em situação de rua. Nós falávamos sobre como muitas delas pedem, num ato de desespero e esperança, para ir se internar numa comunidade terapêutica. Este pedido vem junto de muito desespero, mas num lampejo de lucidez.
Aquele jovem pai que me chamou nas redes sociais não estava sóbrio quando a filha precisava dele. Ele quer sair disso, mas não consegue sozinho. Teve a coragem de pedir ajuda, sabendo que está doente e precisa se tratar.
Uma mãe que chora a dúvida de ter educado, ou não, adequadamente o seu filho, pois aos 13 anos ela descobriu que ele estava envolvido com um grupo de amigos que faziam uso de álcool excessivo. Uma avó que se lamenta de não ter sido mais enérgica e de não ter tido a habilidade de evitar que o neto, confiado a ela pela vida, se encontrasse com as drogas.
Estas são dores diversas, genuínas, que afetam tantas vidas, há muito tempo. Tem gente que diz que é falta de fé, outros de vergonha. Só que o problema é bem mais profundo e precisa ser encarado com seriedade, vontade e profissionalismo.