Esses dias tenho pensado muito sobe a dádiva do tempo e o que tenho feito dele.
Com o início da pandemia, nas primeiras semanas, com aquela incerteza do que se tratava e quanto tempo ficaria, parei um pouco com algumas coisas: visitas e ações do movimento voluntário, programa para a rádio, viagens, palestras, aulas, encontros, treinamentos, reuniões, caminhadas.
Foi tudo muito abrupto. Com o susto, o medo, a dúvida, fiz como muitos e me recolhi em casa e presenciei, pela janela, o silenciar do trânsito, o movimento dos apartamentos vizinhos, os dias mais longos e mais vazios. Ouvia a conversa das pessoas que vivem nas calçadas em frente ao meu prédio como se elas estivessem em minha casa. Parece que o mundo se calou e deu voz a quem já tinha, mas estava abafada pela nossa correria.
Aí começaram os contatos com os mais próximos, com os amigos que há tempos não via, para saber como estavam e reiterar a amizade, carinho, importância das pessoas em minha vida, coisa que a falta de tempo, ou sei lá o que, nem sempre deixava acontecer.
Um novo cenário foi sendo desenhado: as pessoas adoecendo, não só com o vírus, mas com a ansiedade, a tristeza, a insegurança. Pessoas passando fome, problemas sociais pipocando de todo lado. Não que tudo isso não existisse, mas que ficou mais ensurdecedor.
Os pedidos de ajuda se intensificaram: alimento, leite, fralda, roupas, botijão de gás, cadeira de rodas, papel higiênico. Depois vieram os pedidos desesperados de instituições, comunidades. Mas adiante, outros clamores: dessa vez de atenção, de escuta.
A necessidade material não foi suprida e a emocional está matando.
Nesse processo todo, percebo ainda mais latente a necessidade de entender “o que dou conta de fazer e o que não consigo”.
Agora, o tempo tem passado voando e só percebo que os dias estão indo embora quando alguém comenta: “mais um mês que se vai, daqui a pouco é Natal”.
Não, não é isso que quero para mim. Quero, como disse Zack Magiezi, entendendo que tudo é finito, “criar momentos eternos”. Mas como, se o deus Cronos está, como na mitologia grega, engolindo seus filhos que nascem?
Augusto, dito primeiro imperador romano, dizia: “apressa-te, devagar”. Sim, entendi, não dá para parar, temos que caminhar. Mas do que adianta correr e não aproveitar o caminho? Do que adianta devorar com voracidade as horas e acordar com refluxos a noite, de tempos mal digeridos?
Rubem Alves escreveu, e eu usei em muitas palestras, um texto lindo, que dizia que não teremos tempo de fazer tudo aquilo que queríamos. Não vamos conseguir ler todos os livros, realizar todas a viagens, abraçar todas as pessoas. Por isso, é importante decidir, entender, descobrir o que é “essencial”.
Abraçar todas as causas pode nos fazer mais Cronos que Kairós, esse, que é o deus do tempo, mas não o cronológico. Kairós é o deus do tempo oportuno. Aceitar todos os convites e ser fração em todos eles não te faz melhor em nada. É melhor ser sincero: sinceridade e respeito a mim mesmo, ao meu tempo, à minha vida. Agradecer alguns convites, escolher que causa abraçar, perceber com que devemos dedicar o nosso tempo, significa não deixar o outro na expectativa e esperança da sua presença.
Agradecer um convite e recusá-lo para alguns pode ser a exclusão do mercado, da cena, dos holofotes, do circuito. Então, tem gente que vai abraçando tudo. Aí se atrasa em um, não aparece em outro, não completa nada ou se mata para fazer presença em tudo. Mas será que estará de verdade, de todo o coração ali?
O coração que para os orientais tem o sentido de consciência. No Egito antigo divulgava-se a lenda de que só teria vivido com sucesso aquele que, numa pesagem do coração, conseguisse tê-lo mais leve que a pena da deusa Maat. Sabe qual o significado de tal pena? A paz.
Seja sincero com seus desejos, com suas limitações, com seu tempo. Agradeça quando não pode, pois isso é também respeito a quem convida. E se o outro, com a sua recusa, se chateia, ele é que vai ter que aprender com a vida aquilo que os Toltecas já diziam de “não leve nada para o pessoal”, pois, por mais que a gente queira, esse universo não gira em torno das nossas vontades e das nossas imaturidades.
Yehuda Bacon, jovem que tinha 13 anos quando foi levado a Auschwitz , hoje é um desenhista de 92 anos. Perguntaram-no se os anos passados num campo de concentração poderiam ter um sentido. Ele disse: "Quando rapaz, pensava: vou contar ao mundo o que vi em Auschwitz, na esperança de que o mundo se tornasse outro. Mas o mundo não mudou e o mundo nada quis ouvir sobre Auschwitz. Só muito mais tarde compreendi verdadeiramente qual é o sentido do sofrimento. O sofrimento tem um sentido quando tu mesmo tornas-te outro". Talvez esse seja também um sentido do tempo.