Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

A foto é um retrato de quê?

Publicado em 23/12/2022 às 06:00.

Eu entrava no supermercado para fazer uma compra rápida, por isso tinha pressa. Ao lado da porta de entrada tinha uma jovem com dois meninos, um menor sentado em seu colo e o outro brincando com o vento, imitando um avião com a mão.

Parei e disse a ela que eu tinha ganhado uns chinelos de criança, se os meninos precisavam. Ela disse que sim e os dois já foram se animando e pedindo: eu quero um chinelo verde. Brinquei com cada um deles sobre a cor dos chinelinhos que eles calçavam e eles foram respondendo. A mãe já tinha dito que eles não tinham que escolher a cor, pois era presente. 

O menor me disse que estava com sede e pediu água. A mãe entendeu que ele tinha pedido uma bola e logo o repreendeu, mas sem alterar a voz: “Você tem bola em casa”. Ele resmungou: “Eu tô é com sede”.

Entrei, fiz minhas poucas compras e saí. Dei a água ao menino e falei que voltaria de casa com copos para eles beberem. O menorzinho, mais despachado, se apressou em dizer: “A gente bebe no bico, não precisa de copo, não”. Eu disse àquela mãe que eu voltaria para deixar os presentinhos conforme prometido e ela me perguntou: “Então podemos ficar esperando, né?”.

Por sorte o Instituto Marum Patrus tinha mandado umas caixas de chinelos para serem doados para adolescentes em abrigos e, naquela mesma noite, eu tinha acabado de abri-las para separar as numerações de adulto para enviar para o Inaper, instituição que acompanha e qualifica profissionalmente homens em situação de rua. Na festinha de Natal deles, cada um ganhará um chinelo e eu havia descido de casa justamente para entregar os 50 pares que a Angélica, coordenadora do Inaper, precisava.

A Paty Filizzola me doou muitos copos promocionais e a Janine Jussara já havia deixado diversos presentes masculinos e femininos para a ação no abrigo de Nova Lima. Então, peguei uns pacotes de bis doados pela Cemes do TJMG, juntei a uns copos e uns presentes bem embaladinhos e adicionei os chinelos, inclusive para a mãe.

Quando cheguei na porta do supermercado a alegria era imensa. Criança recebendo presente é presente para a gente. Os chinelos eram temáticos e o maiorzinho ficou com o do Homem-Aranha. O menorzinho experimentou o do Batman, mas ficou grande. Como toda criança, a honestidade é latente: “Esse não ‘cabeu” em mim, não”. Eu entreguei um outro e disse que o do Batman seria para quando ele crescesse. Ele mesmo guardou na sacolinha e avisou à mãe que usaria quando ele fosse maior.

Fui me despedindo, pois tinha que trabalhar um pouco, no que a mãe me pergunta: “O senhor não vai tirar foto, não?”. Eu expliquei que não, pois todos os doadores já haviam sido agradecidos e sabiam que suas doações iriam de fato para quem realmente precisa. 

Eles me desejaram Feliz Natal e eu subi pensando naquela pergunta: “Não vai tirar foto, não?”.

Quando recebemos doações materiais, é importante fotografar e postar, pois isso traz mais transparência daquilo que fazemos com o que é do outro, além de despertar o interesse de outras pessoas a doarem também e estimular a publicação de ações solidárias que não vemos com frequência nas grandes mídias.

O Igor Monteiro, que é da ONG Aadora, que atua com doenças raras, posta fotos com diversas pessoas que ele visita e usa suas redes sociais para explicar cada doença e apresentar a necessidade daqueles com quem conversa, seja por um tratamento, uma medicação ou algum recurso. Por trás daquela foto há um trabalho feito pelo Igor, advogado, que milita nessas causas. Isso também é feito pela Michely Siqueira, outra advogada incansável na luta pelos direitos de pessoas com deficiência. Michely usa suas redes para trazer conteúdo de interesse público, mas para dar voz a diversas pessoas que precisam ser vistas.

Postar uma foto serve para informar ou para mobilizar, mas as postagens seguem muito a própria característica da ONG ou do indivíduo, que quer sensibilizar a sua rede para uma causa ou simplesmente causar em benefício próprio.

Eu sou a favor de se publicizar ações solidárias, ainda mais quando envolve uma rede de pessoas ou empresas que apoiaram para que aquilo pudesse acontecer. Mas é muito importante que a publicação não gere desconforto ao ser produzida, não humilhe quem recebe o apoio, respeite a individualidade e preserve o respeito e a dignidade da pessoa, esteja ela morando na rua ou num abrigo, cumprindo pena num estabelecimento prisional, realizando um tratamento numa clínica ou hospital e por aí vai.

O Natal suscita nas pessoas um espírito de solidariedade efêmera. Não que elas não queiram ajudar durante todo o ano. Muitas querem, mas aquilo não faz parte da rotina delas, não é um hábito incorporado à sua vida. No fim de ano, a culpabilidade religiosa, ou a análise de uma vida que mereça mais sentido, leva muita gente a fazer doações, sendo a maioria delas muito bem-vindas por parte de quem necessita. 

Carl Jung disse que “ao tocar uma alma humana seja apenas outra alma humana” e eu ouso em fazer um complemento: neste momento, use o melhor do humano que você consiga ser. 

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