Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

A idosa que quer perder o medo de perder

19/07/2024 às 06:00.
Atualizado em 19/07/2024 às 14:17

Após a minha palestra para aquele grupo de idosas, uma delas me fez um convite que logo se via que não era apenas por mera formalidade. Ela se emocionou com o tema que abordei, já que falei do sentido da vida, passando por temas densos, como a solidão e o luto, e por alguns outros mais palatáveis, sem que deixem de ser complexos, como é o caso da esperança e da felicidade. 

Viúva, com filhos criados, amados e presentes, ela me disse que se sente só, mesmo não estando. “Deve ser a saudade do meu velho, que bate de vez em sempre. Foram muitos anos compartilhados e cada coisa que fazíamos juntos, me remete ao vazio que ele deixou. Mas fui feliz e me conforto com isso”, disse, amável, e se corrigiu: “ele, na verdade, não deixou vazios. Deixou lembranças, boas marcas na minha vida”.

O convite que ela me fez era para que eu fosse a uma reunião mensal que ela faz com as amigas, todas acima dos 70 anos de idade, que se encontram numa cafeteria para simplesmente conversarem. “A gente gosta de ler, viajar, mas o encontro não é para isso, é só pra gente falar das coisas boas e rir, dar gargalhadas mesmo”, contou-me aquela senhora.

Eu disse que iria, como boa parte dos mineiros faz, sem uma data agendada, nem nada, só por força das circunstâncias e do hábito. Num outro dia ela me mandou um áudio por uma rede social, reiterando o convite, pois já tinha contado para as amigas e a espera de todas era tema das conversas de cada encontro. Fiquei lisonjeado e, agora, quase que pressionado a ir, uma vez que aquela promessa, feita num aceno social, era esperada por cinco idosas.

No dia combinado, eu lá estava, numa cafeteria, para conhecer e conversar com aquele animado grupo. Como fui bem recebido e me deixaram à vontade, resolvi propor uma brincadeira, perguntando se elas fossem ainda crianças, mas tendo a mentalidade de hoje, o que elas responderiam àquela clássica pergunta: ‘o que você quer ser quando crescer?’. 

Uma delas já se adiantou e disse: “olha, eu pegaria aquela menina no colo e diria: minha querida, antes de crescer, brinque mais, sem a pressa do tempo. Depois que crescer, estude aquilo que você gosta e viaje, viaje muito. Junte o dinheirinho que tiver e viaje, pra evitar que esse dinheiro vá pros remédios mais cedo do que deveria”.

Nessa hora todas riram, falando das contas da farmácia e os preços absurdos dos remédios. “Uma caixinha custa isso tudo”, dizia uma, no que a outra lembrava que sua amiga tinha era sorte por não precisar tomar um outro tal medicamento, caro e contínuo. “A gente envelhece e se casa com a drogaria. Mas é um casamento abusivo”, disse uma delas, às gargalhadas.

Entre tantas respostas, uma me intrigou. Uma daquelas senhoras com mais de 80 anos falou que diria para a criança que ela não se preocupasse em ser feliz sendo professora, médica ou dona de casa. “Não é a profissão que vai te fazer feliz, mas é a felicidade que vai te conduzir para caminhos que vão se complementando, te completando. A profissão passa a ser uma parcelinha dessa felicidade”.

Eu olhei para aquela senhora, que estava com uma roupa de frio bem aconchegante, cabelos brancos e ainda molhados e bem alinhados, unhas feitas com cores vivas, sem maquiagens, mas com um batom. Perguntei se ela não tinha tido uma vida feliz. Ela, com um jeito de uma avó que olha para um neto, respondeu: “gastei muito tempo insistindo em encontrar a felicidade onde ela não estava. Um dia, já velha, me olhei no espelho e ri. Ri muito. Descobri onde a felicidade sempre esteve simplesmente olhando num espelho. Sei lá se ela sempre esteve ali, mas sei que hoje tenho olhos para vê-la”, concluiu aquela idosa, com um gole de café quentinho.

Cada uma foi contando a sua história, dizendo onde acham que erraram, mas falando dos seus acertos também. Falavam dos filhos, da alegria de não serem abandonadas por eles, que parece ser o medo de tanta gente. Falaram das viagens que fazem, dos encontros do Sesc, onde elas podem fazer “ginástica”, como diz uma delas, yoga, aulas de artesanato e participarem dos bailes, que são uma “noite de gala”. Eu adoro esse termo “noite de gala” para traduzir que a coisa é chique de verdade. Parece que tinha um programa de TV, na década de 1960, com este nome, inclusive.

Nas respostas de cada uma delas, que se tornaram conselhos para aquela criança que elas foram um dia, havia muita convicção. Parece que o envelhecer dá a algumas pessoas mais clareza (ou seria coragem?)  para dizer e fazer algumas coisas. Uma das senhoras não havia respondido ainda, mas, depois de pensar bastante, ela nos brindou com uma lúcida reflexão: “perdi minha mãe aos 10 anos e sempre vivi com medo das perdas, antes mesmo de ter conquistado alguma coisa. Perder o medo de perder foi pra mim uma conquista. Hoje eu nem penso nessas pequenas perdas que nós, velhos, temos. Meu foco é no que eu tenho hoje: acordar, respirar, tirar a proteção noturna que uso para dormir, me alimentar, fazer a minha caminhada, ler os meus livros, sentir o sol e o vento. Ah, e o cheirinho do café. E, ainda, nessa minha idade, fazer novos amigos, como você. Viver é perder, mas, para perder, é uma gostosura ter vivido.” 

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