Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

À margem da infância: abandono e vício no Centro da capital

Publicado em 17/01/2025 às 06:00.

O atraso do ônibus não foi o maior incômodo daquela manhã. Chegamos à rodoviária de Belo Horizonte por volta das sete horas, quando a cidade ainda estava lenta, e o trânsito fluía com a tranquilidade das férias escolares. Ao nos aproximarmos pela rua Paulo de Frontin, que leva à entrada dos ônibus interestaduais, uma fila de ônibus se acumulava e, pelas janelas, cenas cotidianas da cidade se desdobravam.

A imagem que logo chamou a atenção foi a de um grupo de homens magros, com barbas por fazer e chinelos ou tênis surrados e sujos, virando a esquina da avenida Olegário Maciel, com algo nas mãos que se assemelhava a um cachimbo improvisado. Seus movimentos eram rápidos e desconexos. Um deles repetia o gesto de levantar e baixar a manga da blusa, como se tentasse aplicar algo no braço, mas o movimento parecia sem sentido, quase um reflexo de sua própria desorientação. Eles se comunicavam sem palavras, numa coreografia de olhares e gestos que indicavam cumplicidade em algo, desacerto em outros momentos.

A cena ganhou um tom ainda mais pungente quando eles, encostados na parede de um bar, na esquina, veem um menino se aproximando. Pequeno, não estava mal vestido, mas suas roupas eram grandes demais para ele: bermuda para baixo dos joelhos e camisa que chegava quase aos joelhos. Calçando chinelos grandes demais para seus pés, segurava uma embalagem plástica leitosa que balançava e aspirava com movimentos ágeis. Ele olhava dentro do pequeno furo do frasco e, mais uma vez, aspirava ou cheirava.

Ele se aproximou do grupo, mas foi afastado por um dos homens, que parecia querer protegê-lo daquilo que manipulavam. Eu nem sei se o homem colocava sentido no que fazia, afastando o menino com as mãos, sem falar nada. Nenhum deles dizia nada. A rua suja, cheia de lixo, fazia cenário para aqueles homens. Esse menino, que não deveria ter mais de 15 anos, atravessou a rua e entrou na rodoviária. Sua imagem causava medo e desconforto em quem passava. Ele pedia algo, mas não abordava agressivamente. Sua presença, por si só, era suficiente para afastar as pessoas.

Eu fiquei impressionado com aquele menino. Queria perguntar para alguém do ônibus, que também observava aquela cena, quantos anos deveria ter aquele adolescente com jeito de criança. Quem passava por ele segurava a bolsa ou atravessava. Ele, inebriado, parecia não ter forças, naquele momento, nem para correr. Ele precisava de dinheiro, seja para se alimentar ou para matar a fome pelo uso de algo que o tirasse dali, que o deixasse esquecer que estava ali.

Uma vez, um adolescente me disse que ele passava na rua e uma senhora segurou a bolsa ao vê-lo. Ele disse que jamais faria nada com aquela mulher, mas foi ela quem “deu a senha”. Ao julgá-lo, ele entregou o que ela pediu. Foi atrás dela para, ao menos, dar-lhe um susto.

O ônibus finalmente avançou, mas a imagem do menino ficou. Descendo do veículo, precisei lidar com o caos das corridas por aplicativos no péssimo espaço que destinaram aos profissionais que têm que entrar para embarcar passageiros pela avenida do Contorno: um lugar apertado, ínfimo e que mescla carros e gente desesperada por encontrá-los. Vários cancelamentos depois, resolvi desistir e ir caminhando até a minha casa. No trajeto, a cena da região da praça da rodoviária era desoladora: pessoas deitadas no chão, lado a lado, numa aparente tentativa de se aquecer; outras vagavam com passos acelerados, mas sem rumo. A miséria estampava-se nos olhares e nos gestos. Era impossível não sentir um aperto no coração.

Uma mulher me disse que ali tem muito marginal. Eu disse a ela que, no sentido de estarem à margem, eu concordava com ela. Essas pessoas têm histórias. Sei que os relatos de pessoas conhecidas e da mídia nos fazem ter medo ou redobrar a atenção. Acredito que algumas daquelas pessoas já tenham partido e possam partir para cima dos transeuntes, mas isso não apaga o fato de que, em cada uma, há uma história anterior à rua. É isso que precisamos entender.

Lembrei da série “Os Quatro da Candelária”, que retrata a violência e a exclusão social enfrentadas por crianças em situação de rua. Assim como no filme, onde cada criança tem uma trajetória marcada por dores e sonhos interrompidos, na vida real essas histórias se repetem em um ciclo que parece não ter fim.

O menino que vi na rodoviária talvez seja um dos muitos “quatro” espalhados pelas cidades brasileiras. Sua imagem é um lembrete de que a desigualdade não é apenas um problema estatístico; é um drama humano, vivido por indivíduos com nome, rosto e esperanças um dia cultivadas – e, talvez, enterradas. E, ao mesmo tempo, nos faz pensar na responsabilidade coletiva que temos de mudar essa realidade.

É fácil atravessar a rua para evitar o desconforto de encarar a pobreza de perto. Difícil é lembrar que cada pessoa ali não é apenas um corpo jogado no chão, mas uma história, uma vida que, por algum motivo, perdeu o fio condutor.

Recordei uma fala do Machado de Assis que acho bem propícia para me ajudar a manter um comportamento mais ativo na vida. Dizia o grande poeta: “O tempo caleja a sensibilidade e oblitera a memória das coisas.”

* Palestrante, professor e criador do movimento Tio Flávio Cultural

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