Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

A quem interessa que o 'sistema' mude?

Publicado em 05/04/2024 às 06:00.

A quem de fato interessa uma mudança no sistema? Quem é o sistema, já que todos o culpam, inclusive o governo, os órgãos constituídos, mas ninguém está nem aí para assumir-se nele? Atribuir a culpa a algo que nem cara tem fica mais confortável, pois os que acreditam que a sua verdade deva prevalecer ficam protegidos em seus reinos, intocáveis, pela falta de informação e mobilização do povo, por uma representatividade partidária com interesse bem focados, que acordam a cada dois anos para conhecerem a realidade das comunidades, mas dorme em berços arejados na maior parte dos seus mandatos.

Eu já pensei muito em deixar de votar. Mas, toda vez que isso me ocorre, vem à minha mente onde é que isso nos levaria. Desistir não é uma opção nesta seara político-podre-partidária. Tente precisar de um só deles após as eleições para ver se você os encontra. E não é para pedidos pessoais, mas questões comunitárias. É uma luta, um descaso até o momento em que enxergam aí uma bandeira que seja palco pra suas conveniências. 

Na área social, sofremos com isso. A cada período eleitoral, os gestores de Organizações da Sociedade Civil – OSCs, ou de associações comunitárias e populares, são procurados, cortejados, elogiados, afagados, para meses depois serem afogados e esquecidos. Há exceções, obviamente. Mas até mesmo com elas eu tenho me desanimado. Parece que a próxima eleição é a preocupação maior de quem já está lá.

Precisamos não desistir, nesse caso. É direito nosso, já que atribuiremos um voto a um candidato. A gente acha que este é um ato ínfimo e que só o meu voto não fará diferença, mas faz. Por isso precisamos não mais correr da política, mesmo que não sejamos candidatos a nada, como é o meu caso. Precisamos assumir a política. E falo isso pensando, aqui, em todos os poderes constituídos.

Hoje temos burocratas que julgam os famintos pela fome que aqueles passam, sem saber ao menos o que é a fome. Em seus olhos, o apetite é de vingança, de um povo que os ameaça, que os instiga e afronta, pois apesar de um sistema remar contra, esse povo teima em existir. Podiam ao menos ter lido Carolina Maria de Jesus, mas suas leituras são outras. “Quem é esta catadora de recicláveis para me ensinar alguma coisa?”, devem pensar alguns deles.

Deve ser bem fácil e cômodo sentar-se numa das poltronas almofadadas das esferas de poder e olhar para um papel e dele decidir vidas. A do decisor está garantida, pelos acessos que o poder constrói. “Que o povo ache seus acessos, e quando achar, a gente os barra aqui”, devem pensar alguns. Afinal, se esses burocratas fizerem algo errado, por mais absurdo que seja, há quem acoberte e há nós, povo, que esquece. Como dizia o Dr. Mário Ottoboni: “as coisas só têm significado quando as conhecemos”. E Saramago completa: “é preciso sair da ilha para conhecer a ilha”.

Enquanto isso, pessoas sofrem de saúde mental e não conseguem assistência; famílias precisam travar lutas infindáveis para salvarem seus filhos atípicos que dependem de uma cara medicação; assalariados suam diariamente em busca de comida, pois já esqueceram da dignidade em troca da busca pela sobrevivência; escolas estão sucateadas e o ensino não tem valor, tanto é que professores, há décadas, promovem greves que duram meses, sem o devido respeito de seus administradores, sejam em que âmbito for. E aí “a culpa é dos docentes, que não querem dar aula”, pensam aqueles que não conhecem de fato a educação pública como um direito de todos. E quem está distante dessas realidades há de dizer que isso é um exagero.

Pessoas são moídas em carceragens, mas quando alguém se propõe a fazer algo que impacte as suas vidas,  e que contribua em sua transformação, já que elas voltam para o seio da sociedade, há quem apoie, mas há muitas engrenagens que emperram, pois a quem interessa que aquelas pessoas saiam diferentes? Minha caríssima sociedade, isso deveria ser um interesse nosso, pois a cada dia que se esquece deles lá, nós sofreremos as consequências aqui. E há dezenas de anos que instituições sérias, no Brasil todo, provam que a educação muda perspectivas até nesses ambientes sombrios.

    Um dia, dentro de uma unidade socioeducativa, um adolescente em conflito com a lei me perguntou: “pra que que eu vou estudar? Roubar me dá o que eu quero mais rápido”. Eu olhei pra cara dele, meus olhos foram perdendo o brilho, porque o cansaço me atingiu naquele momento, pensei em desistir de tudo, parar de pensar que eu vou mudar, com o que faço, a realidade dura que se apresenta diante de nós. Foi quando um incômodo me consumiu: desistir, naquele caso, seria fracassar naquilo que eu jurei abraçar como profissão. Olhei pra ele e disse: pois é isso mesmo, hoje você acredita que R$ 50 por um celular roubado possa se transformar num tênis que te faz sentir gente, pois pra muitos de nós é preciso esfregar na cara da sociedade que a gente tem, pra ser valorizado com alguém. E a forma que você pensa é celebrada por um monte de gente, que quer te ver aqui, ou morto, mas nunca com inteligência suficiente para mudar o que está posto. Você hoje rouba um celular, ganha uma grana, torra com aquilo que te faz parecer que você é aceito: tênis caro, celular bom, roupa de grife. O dia que você usar a inteligência, e não a força ou a ameaça que provoca medo em inocentes, você será o medo de um sistema.

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