Dentro de um ônibus interestadual as pessoas ainda se acomodavam em seus lugares quando eu, mirando a última poltrona, que é a minha predileta, pedia licença para avançar corredor adentro.
Atrás de mim vinham algumas crianças, que estavam com uma jovem, aparentemente a mãe. Elas também tomaram seus lugares, sendo o menino e a menina mais crescidinhos e um outro que não parava de chorar, mesmo no colo da jovem. Era um bebê que enfrentaria aquelas nove horas de viagem entre Belo Horizonte e São Paulo.
Alguns motoristas da empresa também faziam conosco o trajeto daquele dia, mas no papel de passageiros. Eles conversavam animadamente entre si, o que não era diferente de muitos outros passageiros que, numa viagem diurna, acabam fazendo amizade e interagindo.
O bebê no colo da mãe chorava. Menos incomodados com o barulho e mais com a agonia da criancinha, algumas senhoras se ofereciam para ver o que estava acontecendo. “A barriguinha dele está dura, devem ser gases”, dizia uma. A outra, vendo-o soluçar, vai até a sua poltrona e tira um pedaço de linha de uma manta avermelhada, coloca na boca e depois deposita, enroladinha, na testa do menino: “agora para o soluço”, diz ela.
Nesta tentativa de acudir o bebê é que nós descobrimos que a mãe era surda e não tinha a fala articulada. Mãe, ela sabia que o bebê chorava e se dedicava a dar-lhe acolhida. Mas tudo que fazia parecia não alcançar sucesso.
Sei que no decorrer da viagem alguém acaba descobrindo que a mãe desceria em São Paulo e já embarcaria, num ônibus da mesma empresa, para outra localidade. Tentando ajudá-la, uma senhora descobre que a passagem havia sido comprada pelo irmão, mas que parecia que ainda não tinha sido confirmada. Os motoristas que viajavam como passageiros imediatamente ligaram para a empresa e descobriram que a compra não estava de fato confirmada.
Sei que nisso o ônibus já tinha “adotado” a família, não que aquela mãe não tivesse condições de cuidar dos três filhos e resolver as suas questões, mas com a abertura dela nos sentimos convidados a ajudar.
Eu ficava da última poltrona observando como que cada um foi assumindo uma função. Um passageiro falava pelo celular com o irmão da moça, enquanto uma cuidava das outras duas crianças e a mãe, no banheiro, trocava a fralda do bebê, que depois de um bom tempo de choro e resmungos, acalmou e dormiu.
Dois jovens desceriam em São Paulo e pegariam o mesmo ônibus que a jovem e ofereceram-na ajuda com as bagagens. O motorista-passageiro já tinha confirmado que a compra estava pendente e o irmão da moça, a distância, efetuou o pagamento, enviando o comprovante para que ela retirasse a passagem na rodoviária.
Na hora de descer em São Paulo os passageiros se despediam como se fossem uma família. Enquanto uns dobravam seus cobertores, outros recolhiam o lixo de suas poltronas e trocavam gargalhadas de alguma situação engraçada que comentavam.
Peguei minha mochila na poltrona e iniciei o meu desembarque. Os dois rapazes que também fariam o trajeto daquela jovem já tinham se encarregado de pegar as bolsas da mãe, aliviando o peso para as duas crianças maiores. Ela, com o bebê no colo, sinalizou que precisava ir ao banheiro trocar-se antes de descer e eu fiquei com o bebê nos braços. Ele estava acordadinho, mas bem mais confortável. No colo ele descansava, alheio a tudo que acontecia.
Entreguei a criança, desci e segui meu caminho rumo ao metrô, carregando comigo uma sensação tão boa. Fui pensando como há tanta solidariedade entre nós. Todos queriam ajudar aquela família. Até os que não fizeram nada com o olhar se mostraram presentes.
Pensei como a onda de descrença na humanidade vai crescendo e nos fazendo acreditar que não temos solução como sociedade. Mas, de forma anônima, sem ir para as mídias como as tragédias vão, sem merecerem o mesmo destaque dos atos e práticas de violência, sem ganharem visibilidade como os desfortúnios, está uma humanidade que nos liga mais do que a gente se apercebe.
No ano passado, num momento crítico durante a pandemia, cerca de 180 organizações sociais se uniram na arrecadação de recursos para a compra de cestas básicas para famílias em vulnerabilidade. Sozinhas estas instituições conseguiriam algo, mas com a soma de esforços, em 15 dias a meta estabelecida para 40 dias foi alcançada. Quando pedíamos a ajuda de pessoas e empresas, não tínhamos dificuldade, pela credibilidade das instituições, mas também pela vontade de movimentar-se, pela necessidade de “indignar-se”, como dizia a psiquiatra alagoana Nise da Silveira. Eu comungo do pensamento da dra. Nise: “É necessário se espantar, se indignar e se contagiar. Só assim é possível mudar a realidade” e o historiador Rutger Bregman, em seu livro “Humanidade: uma história otimista do homem”, valida cientificamente esta ideia.