Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

A terrível dor da solidão!

Publicado em 12/01/2024 às 06:00.

No dia em que fizemos a nossa primeira ação voluntária na ala de hemodiálise de um hospital em Belo Horizonte, o grupo estava empolgado. Era um sonho antigo que tínhamos, de estar ali com os pacientes durante boa parte da manhã de um sábado, conversando, conhecendo, nos reconhecendo nas histórias do outro, mas com foco na fala que humaniza, que respeita o momento de cada um e sua individualidade. 

Sim, esta era a orientação que passávamos para os voluntários, na calçada em frente à entrada do hospital. As recomendações sanitárias foram dadas, devido à baixa imunidade de cada paciente, e tudo isso bem antes da chegada da pandemia. O grupo, já completo, entra para a visita, que consistia em percorrer o corredor de poltronas, onde os pacientes ficam fazendo o tratamento da hemodiálise, cumprimentar, sem mecanicismo, e deixar fluir a ação. Era a primeira vez que íamos naquela ala e, por isso, ainda não éramos conhecidos pela equipe de trabalho e pelos pacientes.

A alegria de uns ao nos receber era evidente. Paravam o que estavam fazendo, seja a leitura de um livro ou um assistindo a um filme na tela do tablet ou celular. Curiosos, alguns perguntavam se ia ter música ou qual a atividade que o grupo desenvolveria naquela manhã.

O momento de cumprimentar cada pessoa era o mais importante, pois ali é que a conexão se estabelecia e a gente conseguia conhecer um pouco mais de cada pessoa, que tem uma história que não se resume à doença e ao tratamento.

Ao nos aproximarmos de um jovem, ligado àquela máquina através do braço, que entregava e recebia seu próprio sangue, ele reage e, imediatamente, cobre-se com uma manta, dos pés à cabeça, virando-se de costas para quem se aproximava. O ímpeto era dar bom dia assim mesmo, mas a orientação era de que respeitássemos o tempo e o espaço de cada pessoa, o que é o mais sensato a ser feito.

Após passarmos por cada poltrona, anunciávamos o bingo, que era permeado por músicas ao violão. As cartelas eram distribuídas e até mesmo os enfermeiros ajudavam a marcar os números para aqueles que tinham mais dificuldade.

Esta cena da primeira visita não sai da minha cabeça. Fiquei impactado pela receptividade tão carinhosa da equipe do hospital e dos pacientes. Mas, como sempre acontece, o cérebro capta aquilo que foge à norma. O rapaz que se encasulou na sua manta para não conversar com a gente me incomodou. Foi ele quem me ensinou uma nova postura nas ações com outros públicos: ninguém é obrigado a querer participar daquilo que a gente leva numa ação voluntária. E está tudo bem, estaremos ali para quando ele quiser, se um dia assim acontecer.

Durante uma das visitas, algo inusitado aconteceu comigo. Uma enfermeira veio me chamar, pois uma paciente lá do fundo disse que era minha prima. Fui até lá, duvidando um pouco, pois não tinha conhecimento de nenhum parente em tratamento de hemodiálise. Ao chegar à poltrona, as feições daquela senhora vieram à minha mente, trazendo uma jovem com quem eu trabalhei anos antes, numa escola em que ela era uma das gestoras.

Ela se identificou, com um semblante de bastante cansaço e um brilho embaçado nos olhos. Era uma prima da minha mãe, que estudou na faculdade que eu dava aula e foi minha vice-diretora numa escola particular de Santa Luzia, que era de sua família e onde eu fui professor.

Há muito não nos falávamos. Por causa de uma briga entre as famílias, e não entre nós, acabamos nos distanciando. Parecia que aquele momento era a redenção, o encontro para nos desculparmos, não pelo que não fizemos, mas que levou ao nosso afastamento. As desculpas eram do tempo que a gente perdeu de conversa, de troca de histórias.

Assim como muitos pacientes sempre nos falam, com grande carinho, ela me pediu para que não deixássemos de realizar aquelas visitas. Por mais que se tenha uma família que apoie, o atravessar a doença arremessa a pessoa numa solidão muito grande.

Pois é! Segundo a pesquisadora Noreena Hertz, que escreveu o livro “O século da solidão: restabelecer conexões num mundo fragmentado”: “Quaisquer que sejam os motivos, nem todo mundo que vive sozinho é solitário” e completa com uma fala de uma senhora de 70 anos, inglesa, que se recuperou de uma gripe: “É solitário ficar doente e não ter ninguém por perto para ao menos lhe trazer uma xícara de chá”.

Fiquei pensando nesta parte do livro, que relata a solidão de uma pessoa durante uma gripe. Mas, bem sabemos, que a gripe é o de menos, uma vez que solitária ela já se sentia há mais tempo e uma doença que é passageira, tão comum, se torna um suplício, não pela doença em si, mas por todo um contexto de solidão e possível abandono.

É muito importante uma observação mais detida se não estamos nos afastando de pessoas que são importantes para nós e se algo nos tem afastado da gente mesmo, nos causando um vazio que uma hora pode ser de difícil retorno.

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