“Eu sou a pior pessoa que existe nesta vida”, me confidenciou uma jovem após uma palestra em uma escola. Eu assustei, pois pensei que fosse uma brincadeira e que logo ela diria algo que viesse a aliviar aquela fala.
A jovem seguia me falando que o marido era o homem ideal, mas que ela não tinha competência para mantê-lo: “E ele tinha razão quando falava que eu sou fraca e que nenhuma das minhas amigas gosta de mim, que estão ao meu lado por interesse, mas que me desprezam”.
Naquela hora ela me perguntou se podia me dar um abraço. Eu ainda estava atônito, sem reação. Havia um pessoal esperando para tirar fotos do outro lado e esta moça, tão fragilizada, precisando e pedindo ajuda.
Abracei a jovem e contei em seu ouvido, não como forma de cochicho ou confidência, uma história que aconteceu comigo, quando uma professora, por algum desaforo que eu devo ter dito a ela, se exaltou e disse que eu não daria certo na vida. Saí da escola, cheguei para a minha mãe, nessa época morávamos em Maceió, e contei a história, no que minha mãe me disse: “quem aponta o dedo na sua cara e diz que você não será nada, não muda quem você é, a sua vida, a não ser que você queira, a não ser que você deixe”.
Eu imagino que não seja nada fácil lidar com um relacionamento abusivo. Vi tanta dor nos olhos daquela jovem, que clamava por liberdade, mas carregava tantas incertezas, tantas dúvidas.
Lembrei, naquele momento, que devo voltar com uma imagem que eu usava em minhas palestras, que é uma frase do cineasta chileno Alejandro Jodorowisky que diz: “pássaros criados em gaiolas acreditam que voar é uma doença”.
Por muito tempo, e ainda hoje, temos o infeliz hábito de considerarmos uns superiores aos outros: homens melhores que mulheres, brancos melhores que negros, etc. Se foi algo culturalmente aprendido, que seja culturalmente desconstruído. Não é fácil, mas é preciso que se faça.
Lembro que ao assistir a série “O conto da AIA” vivi, a cada capítulo, dias de muita tensão. Nunca na minha vida vivenciei tanto mau humor quanto o período em que me dedicava a assistir à série. Pensei em interromper, desistir e parar de pensar sobre aquilo, mas eu precisava levar adiante, terminar e refletir sobre tudo que a ficção descortinava da realidade. Comprei o livro e ainda não o li.
Mas é preciso coragem.
Coragem.
Lembrei de Guimarães Rosa em um trecho do romance “Grande Sertão: Veredas” que diz: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz e ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre, ainda no meio da tristeza!”.
E o alegre no meio da tristeza não é contentamento, mas é lucidez, alerta, despertar. É conseguir, na tristeza, enxergar a saída. A dor é um componente da vida, mas não faço apologia a ela. Ela existe, virá. Gosto muito da vertente defendida por especialistas que dizem que ela, a dor, pode nos ser uma mestra, quando conseguimos passar por ela e, ainda, aprender algo.
Ao sair daquele abraço, aquela mulher me olhou rapidamente e me disse que por muitas vezes ela pensou em tirar sua própria vida, pois ela não era capaz de fazer um homem feliz. Rindo e chorando ao mesmo tempo, enxugando as lágrimas, ela continuou, dizendo algo assim: que bobagem, né? Eu me mato para fazer ele feliz e eu mesmo, nesta relação, só fui feliz no início. Depois fui escravizada, aceitei e quando quis sair, já não via mais possibilidades. Parece que as correntes são em formato de um polvo, que nos prendem as mãos, os pés, a língua, o cérebro e tudo mais. Nós nem sexo fazemos mais, mas ele não quer sexo, ela quer um corpo estendido aos seus pés.
Eu fiquei assustado. As pessoas esperando de um lado, o auditório sendo fechado. Desconsiderei tudo aquilo e vi que aquela pessoa ali era a que mais importava naquele momento. Ela respirou forte, sorriu e disse: “sabe de uma coisa? Quem precisa morrer é esta mulher que se cegou nesta relação. Sou muito mais que isso, mas deixei me apagar. Estou viva e é assim que vai ser”.
Isso tudo foi em poucos minutinhos. Eu não disse nada, foi ela mesma quem conseguiu organizar todas aquelas ideias enquanto nos abraçávamos.
A mulher tem medo até mesmo de despertar: ela pode ser julgada pela sociedade, violentada pelo parceiro, desprezada por pessoas próximas. E é por tudo isto que nós todos temos que evoluir, para ao contrário de condenar, acolher.