Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Abra a janela

27/03/2020 às 06:00.
Atualizado em 27/10/2021 às 03:06

No primeiro dia foi fácil, limpei a casa toda, desfiz do que eu não precisava, organizei armário e gavetas. Dia após dia tenho ido entre o mundo virtual e o real. Pouco mais de uma semana, resolvi tirar uma bancada de vidro que fica embaixo da janela da sala, para que eu pudesse observar a rua, quase sem ninguém.

A minha janela não é de correr, fui pesquisar o nome só por curiosidade e descobri que chama “projetante”, além de encontrar quase uma centena de tipos que eu nem sabia que levavam aqueles nomes. Enfim, como ela abre para fora, o espaço que tenho é bem pequeno. Por isso, fico ali por poucos minutos e para mim ela significa um momento de descanso do que estou fazendo. Na verdade, passou a significar isso agora.

Mas janelas nos desvendam o mundo. Tantas luzes que nunca vi acessas em outros prédios. Crianças onde nunca imaginei, desenhos infantis, ginástica pela televisão. As pessoas assumiram as suas casas.

Ao lado do meu prédio há uma casa comercial para aluguel, e a varanda da frente, que era onde os clientes de um antigo restaurante ficavam bebendo e conversando, dá abrigo a casal que vive nas ruas.

Em dias normais, eu os cumprimento, mas não sei nada deles. Mas isso é corriqueiro, pois há pessoas que vivemos por tempos e não sabemos nada delas ou só o que nos é mostrado. Tá, filosofei, acabei de assistir na Netflix um filme chamado “A Casa”. 

De uns dias para cá, em estado de quarentena, ao chegar na minha janela, inevitavelmente os vejo: cozinhando, conversando, recebendo um casal amigo.
Do andar do meu prédio pensei em quando eu puder sair vou me apresentar e perguntar se eu poderia ajudar com algo. Fiquei até pensando nessa posição que às vezes nós “estamos” e/ou “nos colocamos” de “poder ajudar”. E muitas vezes não é por maldade e nem por acreditar que tenhamos mais que eles, mas é por cultura, mesmo.

Talvez eu tivesse mesmo é com vontade de descer, sentar-me ali, conversar como se nada tivesse acontecendo no mundo. Não sei se eles têm uma rotina, pois já seria demais eu ficar acompanhando-os como um experimento social não autorizado. Mas, toda vez que chego na janela, seja para respirar, refletir, rezar ou ficar ali, parado, olho para baixo e eles estão ali: uma vez sentado no meio-fio escovando os dentes, outra passeando com o cachorrinho – esqueci, é um casal e um cachorrinho, cozinhando. 

Esses dias eles ganharam uma barraca de acampamento e dispensaram as antigas caixas de papelão. 
Já sentado em meu sofá parei para pensar se eles não vão me ver observando. Mas percebi que a gente não tem o hábito de olhar para cima. Eu, da minha janela, olho para frente, para baixo, para o horizonte. E isso nem é filosofia, é constatação.

Esse artigo era para falar sobre a importância da janela. Ainda farei um artigo com esse tema. Pesquisei em diversas fontes sobre o que essa abertura ou vão na parede significa, já que historicamente ela tem registros de importantes “anúncios” e de protestos, não só esses da democracia. Já que servem para fazer homenagens e que em simbologia ou nas ciências e artes orientais carrega tantos sentidos. 

Modernamente, abro janelas no meu notebook para ter acesso a mais conhecimento. Há até uma grande marca que homenageia esse objeto tão significativo. Mas, por hoje, fico na importância real que a janela tem para nos mostrar mundos que estão sob nossos olhares e que, por desculpas, não os vemos.

  

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