Abordando as escolhas que fazemos e as coisas que deixamos para trás em função da expectativa que os outros criam da gente, Rubem Alves fala, em uma parte do livro “Variações sobre o prazer”, de forma tão certeira sobre os relacionamentos com as pessoas que amamos. “Como tenho raiva do Antoine de Saint-Exupéry – ‘tornamos-nos eternamente responsáveis por aqueles que cativamos…’. Mas isso não é terrível? Ser responsável por tanta gente? (…)”
Nesse conviver com tanta gente, deixamos e, também, apreendemos algo. O filósofo Heráclito de Éfeso diz que não há como uma pessoa atravessar o mesmo rio duas vezes, pois o rio muda e a pessoa também. Tornamo-nos responsáveis pelas pessoas no sentido de carregarmos delas algo que nos completou, assim como deixamos algo de nós em tantas vidas que tocamos.
Temos oportunidade de viver bons momentos junto a tantas pessoas diferentes, mas que se unem a nós de uma forma especial. É importante que a gente aprenda a ter uma total entrega e grandeza naquilo que fazemos em cada instante, seja estar sentado assistindo um filme com um filho ou um amigo, seja num café da manhã ou em segurar as mãos de um pai ou uma mãe. Assim se dá, inclusive, numa ação social, que nos aproxima, nas gargalhadas que damos, naquilo de mais simples que a vida pode nos proporcionar e que se a gente não aproveitar, passa...
E passa mesmo! Por isso, os nossos momentos são presentes. São vivências que nos alimentam no exato instante em que acontecem e nas boas lembranças que produzem.
Nos encontrarmos num movimento voluntário, como o Tio Flávio Cultural, não é fruto do acaso, se é que o acaso existe, pois casu vem do latim e quer dizer “sem causa”. Fizemos uma opção de caminharmos juntos, mas mesmo ao nos separarmos, nossas causas não morrem. Ficarão vivas em muita gente que nos conheceu e com quem compartilhamos aprendizados.
O agradecimento é uma maneira de andarmos sempre de bem com a gente mesmo, sem culpas, uma vez que entregamos às pessoas a nossa gratidão, que vem da expressão latina gratus, mas também de gratia, que significa graça. Mas olha que coisa, graça pode ser entendido tanto como bênção como beleza. Então, que possamos dar graças e beleza à vida.
Tudo isso foi escrito numa mensagem para agradecer a cada um dos gestores e voluntários do movimento social que coordeno, mas em especial a uma pessoa, o Alex Fagundes, que foi nosso gestor voluntário, se afastou para ir em busca de novos sentidos em sua vida, já que era arquiteto, concursado em um órgão público, mas pediu exoneração por estar infeliz.
Viajou para fora do país, viveu experiências, voltou inesperadamente no fim de fevereiro desse ano. Chegando ao aeroporto foi direto para a UTI de um hospital na capital mineira. Mandou mensagem para mim, pedindo as orações do nosso grupo de voluntários, que ele acreditava serem “poderosas”, e sugeriu que eu pudesse visitá-lo, na UTI mesmo.
Eu Fui. Entrei sem olhar para os lados e cheguei ao último box, onde ele estava. Percebi que ele tinha mudado muito, não só fisicamente, pois estava inchado devido ao acometimento de um tumor que ainda desconhecia detalhes. Sempre dando a entender que dominava o que estava acontecendo, ele tinha um olhar mais sereno em relação ao Alex que tinha saído pelo mundo.
Falou com as enfermeiras que elas não tinham noção de quem estava naquele quarto. E todo alegre, disse “ele que é o Tio Flávio, tem um projeto de voluntariado imenso”. Elas olharam para mim, sorrindo sem graça, já que não faziam ideia de quem era esse “tio” de quem ele falava tanto antes da minha chegada.
A médica foi fazer um procedimento em sua coluna e ele disse que não precisava de anestesia. Eu olhei para ele e falei “meu Deus, no osso, nas costas, deixa de ser durão, sô”. Aí brinquei com a médica: “sou amigo dele, mas sou diferente. Se eu chegar aqui um dia, já está autorizado, pode anestesiar tudo”. Rimos todos.
Vira e mexe ele pedia as orações do nosso grupo. E recebeu muitas.
Numa das mensagens ele disse que “estou aqui lendo um livro do Brendon Burchard e comecei a aprender italiano. Tenho muito tempo livre aqui, então é boa hora para aprender coisas novas”. No dia 9 de maio mandou uma foto, com os dizeres “saindo pela porta da frente, como prometido”.
Ele ia fazer a quimioterapia e voltava para casa. Foi internado de novo, agora num CTI de outro hospital e pediu as orações que ele tanto estimava. Na última segunda-feira mandei mensagem para ele e não tive resposta. Dois dias depois, uma outra gestora me disse que tinha enviado também, mas ele não tinha lido. Então, resolvi ligar para a recepção do CTI. Educadamente, a recepcionista me disse que ele não mais estava lá. Perguntei para qual setor ele foi e ela me comunicou que ele havia falecido na segunda, 4 de agosto.
Depois de uma novela passar em minha mente por uns minutos, pensei em como avisar ao grupo de gestores. O termo “não resistiu” não significa que “não lutou”. Espero que as nossas preces cheguem até ele, mais uma vez, como ele constantemente pedia.
Sempre falo aos nossos voluntários: celebremos (do latim, celebrare – honrar) a nossa vida.