Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Apetite, sim. Fome, nunca passei.

Publicado em 14/02/2025 às 06:00.

Os comentários de quem passa pelas ruas do Centro de Belo Horizonte parecem ter se tornado uníssonos: o Centro da cidade está repleto de lixo e as ruas mal cuidadas. Fico imaginando uma pessoa com deficiência tentando caminhar por calçadas esburacadas, cheias de obstáculos e restos de tudo que é jogado pela população, em atos tão corriqueiros que agora parecem até normais. Jogar algo no chão tornou-se tão natural quanto bocejar após o almoço.

— Moço, o senhor jogou uma latinha na rua, mas tem um cesto de lixo logo ali — falei para um homem que passava perto da Galeria do Ouvidor.

— Mas latinha não tem problema, não. O povo cata — respondeu ele, sem hesitar.

— As lixeiras que têm aqui estão todas danificadas, tudo quebrado — disse um rapaz que passava e ouviu nossa conversa. 

Não saio pelas ruas como fiscal. Mesmo porque, se o fizesse, perderia o juízo diante de tantas situações absurdas. Mas tem hora que o sangue ferve e chacoalha a língua. Um adolescente passou e deixou uma latinha de refrigerante, vazia, em cima da cesta de lixo. Sem esforço algum ele dispensaria o lixo que ele produziu dentro do lugar apropriado para isso.

Então, dessa forma, está liberado jogar lixo no chão? Afinal, há quem cate, e não há lixeiras. Vi uma vez uma frase, engraçada e ácida ao mesmo tempo, numa praça da cidade de Curvelo: “Se você gosta de jogar lixo no chão para dar emprego para lixeiro, pensa que o coveiro te espera pra fazer o trabalho dele também”.

À noite, a situação é ainda pior. Por volta das 20 horas, condomínios depositam sacos plásticos e caixas de lixo nas calçadas em frente às suas portarias, mas distante da entrada, de modo que seus moradores não sejam incomodados. Quem transita pelo passeio, no entanto, precisa desviar pela rua, muitas vezes correndo risco. Nessa hora, também, há uma visita já esperada: os ratos aparecem para sua ceia. Na verdade, visita ali sou eu.

Um homem que passava brigou com o funcionário do condomínio. Pensei, diante da cena, que ainda consigo ser bem comedido, já que nunca discuti com ninguém na rua por causa de questões como essa.

— Eu coloco os sacos plásticos fechados, mas os “mendigos” e os “catadores de recicláveis” abrem tudo para encontrar algo que possam aproveitar e deixam tudo espalhado — justificou o funcionário.

O homem retrucou:

— Mas e esse monte de lixo de um lado e do outro dos passeios, pela cidade toda? Quem joga não são os “mendigos”?

— Esse aí é o povo porco e sem educação, que não pensa em ninguém, só no próprio umbigo — respondeu o outro, enquanto amontoava mais sacos de lixo.

Alguns quarteirões adiante, uma senhora reclamava:

— Dá até medo andar nessas ruas. Esse povo “mal-encarado” fica pedindo “dois reais” para lanche. Você acredita que um dia um me pediu dinheiro para comprar pinga?

Ela se assustou com um homem sentado no chão, entre outros tantos. Passou com a bolsa rente ao corpo, apressando o passo. Foi um cachorro, que, de tão preguiçoso, nem olhou para ela, que a fez diminuir o ritmo. O homem, em situação de rua, aproveitou a oportunidade.

Como ando pelo Centro a pé — seja à noite, na caminhada, ou de manhã, indo a uma padaria, ao médico ou a algum comércio —, vejo muitas situações. Agora, por algum motivo, tenho sido chamado a interagir com elas. Acho que, por dedicar meu olhar à realidade, as pessoas aproveitam para falar o que sentem.

Dia desses, voltava do otorrinolaringologista, feliz por ele ter dito que minha corda vocal estava excelente. Para quem trabalha com a voz, isso é essencial. Atravessei a avenida Afonso Pena, já na região Centro-Sul, e vi, por volta das 14h30, uma fila de homens sentados no passeio, encostados para não atrapalharem a circulação. Tentava entender o que faziam ali quando dois deles me chamaram pelo nome. Pensei que estivessem apenas lendo o nome na minha camisa do Tio Flávio Cultural, como já aconteceu tantas vezes.

— Tio Flávio, tudo bom? Que bom ver você por aqui.

Respondi que morava praticamente ali perto. Os dois se levantaram, apertaram minha mão e se identificaram como participantes dos projetos sociais que realizamos. Fiquei feliz. Esse reconhecimento é muito legítimo.

Conversei um pouco e perguntei se estavam na fila para algum atendimento público. Eles explicaram que um dono de restaurante ali perto distribui, após as 15h, “40 marmitas para nós, que somos de rua”.

Os dois trabalham lavando carros e ganham aquilo que o cliente puder pagar, sem exigir nada; cada pessoa dá o que pode. Passam o dia todo assim, em uma praça ali perto, e conseguem se alimentar. Mas, de vez em quando, eles vão para aquela fila porque “a comida é boa demais e o dono do restaurante faz de coração”.

Fiquei feliz de saber disso, mas perguntei por que não iam ao restaurante popular. Um outro, que não me conhecia, mas já interagia, disse que perdeu os documentos em uma bebedeira naquela semana. Mostrou os joelhos machucados, o pé inchado. Disse que fez um boletim de ocorrência e precisava imprimir um “Reds”. Sem isso, achava que não poderia almoçar no restaurante popular nem dormir no abrigo.

Sugeri que fosse tentando largar a cachaça aos poucos, pois senão sempre perderia documentos e se machucaria. Ele, sem nem respirar, respondeu:

— Dorme na rua para você ver. Depois me diz se aguentaria ficar “de boa” (lúcido).

Os dois rapazes que me conheciam não usam drogas. Formam um casal e moram em uma barraquinha de lona no passeio de uma repartição pública.

— Vai lá visitar a gente.

Disse que passo sempre em frente ao local onde “moram” e que um dia os chamaria lá para eles me falarem um pouco sobre a vida nas ruas de BH. Eles ficaram felizes, dizendo que iam contar tudo que eu precisasse saber.

 Atravessei a rua e fui ao restaurante que serve a comida para aqueles homens. Pedi para falar com o dono, me identifiquei como jornalista, mas disse que não estava ali fazendo nenhuma matéria, só queria parabenizá-lo pelo que faz. Ele explicou que não faz isso por divulgação — e nem poderia, pois não conseguiria atender a todos. Faz porque entende que é o mínimo que pode fazer. Ali, enquanto esperam, eles não brigam, pois sabem que qualquer confusão pode prejudicar a todos.

Um cliente que saía disse que a comida que acabara de comer era a mesma que aqueles homens do outro lado da rua receberiam. E elogiou o dono do restaurante por se sensibilizar com algo que nem um de nós, naquela conversa, jamais experimentou: a fome.

Esta é a verdade: apetite eu tenho, mas que isso não se confunda com fome. Fome, eu nunca passei.

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