Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Atitude adotiva

Publicado em 09/09/2022 às 06:00.

Logo na entrada da casa, um jardim chama a atenção. Lá dentro, amplos cômodos, grandes janelas, quintal imenso. Tudo é muito grande naquele lugar. Mas o mais importante estava ali, naquelas duas salas conjugadas, em meio a diversos carrinhos de bebê, berços, andadores infantis e muitos brinquedos.

É neste espaço que fica o que há de “maior” nesta casa de acolhimento: as crianças de zero a dois anos de idade, tiradas do convívio da família por alguma decisão judicial que impede o convívio com os pais para a própria proteção dos filhos.

No chão daquelas salas brincavam alegres e inocentemente meninos e meninas que engatinhavam ou já andavam, enquanto alguns bebês eram embalados no colo pelo carinho de um voluntário ou funcionário.

Dali, não podendo voltar para a casa, aquelas crianças entram em processo de adoção. Algumas conseguem, por serem menores de oito anos, que é uma faixa etária limite que muitas famílias colocam para abrirem as portas do seu lar para um novo filho.

Alguns casais inscritos no programa de adoção sinalizam não terem condições de cuidar de crianças com algum tipo de deficiência, leve que seja. E, assim, várias daquelas crianças vão ficando, da casa que abriga bebês para uma que atua com as que têm até sete anos. Depois, em não tendo ainda um lar, estas crianças ficam numa instituição que acolhe meninos ou meninas de até 12 anos. Em se persistindo a ausência do lar, seja da família biológica ou adotiva, o adolescente é acolhido numa instituição de 12 a 17 anos.

Uma realidade tantas vezes invisível: ao completar os seus 18 anos, não há possibilidade de continuar sob a tutela governamental e aquele jovem é “devolvido ou entregue” à sociedade. Que há algum acompanhamento posterior por parte das casas de acolhimento, nós sabemos que sim. Porém, na vida real de muitos jovens são eles por si só, na rua. E às vezes é literalmente na rua.

Um dia, saindo da casa da minha mãe, passei em um abrigo infantil para deixar umas doações. Era um domingo e minha mãe se despediu com um sorriso e um sonoro “com Deus”, como os bons mineiros fazem, numa frase reduzida, mas que em nada perde o sentido de acolhimento e carinho.

Quando bati a campainha daquele abrigo, as crianças já correram para o portão antes mesmo que um educador pudesse vir com as chaves. Pelas frestas do portão eles me viam e gritavam meu nome, dizendo: “veio levar a gente para passear?”.

Entrei com aquele pedido na cabeça: passear. Pedi aos educadores a autorização para levá-los até uma padaria, que ficava na esquina. Eles, apinhados nos meus braços, caminhavam frenéticos pela alegria da presença de alguém diferente, pelo passeio, que não era tão inusitado, já que a padaria era “colada” na casa.

Voltando ao abrigo, eu precisava ir embora, pois em algum momento é chegada a hora de ir embora. Eles, que ficam, da janela falavam: “tio, você volta, né?”. Pensei logo como que aquele “com Deus” da minha mãe é medicinal. É como se ela me voltasse para o seu colo e falasse: eu te protejo, estou com você, sinta-se acolhido. Para aquelas crianças, isso não é tão simples assim.

Um dia, conversando com uma amiga que atua no Grupo de Apoio à Adoção da cidade de Santa Luzia, o Gada, questionei o nosso papel como cidadãos, como voluntários e como humanos neste cenário.

Abrigo não é lugar de “pobres-coitados”, abandonados, sem famílias. Abrigo, hoje chamado de casa de acolhimento, é onde temporariamente estão pessoas, vidas. Olhá-las com estigmas é pior que não as olhar. E todo preconceito vem da ausência de luz, da falta de conhecimento.

A minha amiga do Gada me apresentou ao termo “atitude adotiva”. Não sei se entendi bem, mas este é um comportamento em que cada um tem a possibilidade de desenvolver uma atitude de entendimento e empatia; de acolhimento da dor e das alegrias do outro; de tomar para si algumas responsabilidades, que se refletem no dia a dia, como buscar o bem comum, atentar-se para a existência do outro, cuidar de um espaço que é de convívio comunitário, de julgar menos e fazer mais, evoluindo para uma cultura humanizadora, de respeito e dignidade para todos.

Ao falar sobre isto para 90 homens em privação de liberdade numa Apac, a minha amiga fez aquelas pessoas, ali sentadas durante uma hora de palestra, entenderem que uma atitude nova é fruto de uma nova mentalidade e que isso pode não ser fácil, mas é possível.

Roberta Diniz Orzil, a minha amiga, é professora de Geografia na rede municipal de Santa Luzia, além de ser mãe de quatro filhos, sendo que o mais novo integrou a família aos 4 anos de idade e hoje tem 18 anos.

Após a sua fala na Apac ela foi presenteada, de maneira espontânea, com os aplausos de todos e um quadro pintado por um dos recuperandos, que retratava dois pescadores fazendo o seu trabalho. O detalhe, explicado pelo autor, é que as figuras não tinham rosto, “simbolizando o trabalho anônimo de muitas pessoas, como o da Roberta, mas que faz a diferença e alimenta tantas vidas”, nos explicou o artista que acabara de assistir a palestra.

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