Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Chega de barbárie

Publicado em 03/03/2023 às 06:00.

Eu não sou de sair para bloquinhos nos dias de carnaval. Adoro o carnaval para ficar em casa descansando, lendo, vendo séries nas plataformas de vídeos ou, simplesmente, para não fazer nada.

Acompanhava as fotos dos amigos nas redes sociais, todos se divertindo, numa alegria gostosa de encontros saudáveis. Fantasiados, pintados, atrás de um trio ou em grupos, esses meus amigos, em pontos diferentes da cidade, pareciam felizes e isso me fazia bem.

Ainda torcia, também, para que o carnaval de BH fosse bem legal para quem é mineiro, logicamente, mas para que aquelas pessoas que vinham de fora do Estado tivessem o aconchego dos mineiros e voltassem outras vezes.

Ficava feliz quando alguém dizia que a festa estava alegre e segura. Foi por esta expectativa e por desejo de um evento bom para todos que o relato da cantora Coral, uma artista trans, me pegou de surpresa. E a partir dali foi só incômodo. 

Ela, que em suas redes sociais se dizia animada para o carnaval de Belo Horizonte, já que se apresentaria no primeiro dia, como assim foi feito, vivenciou uma das mais tristes cenas que eu tive conhecimento.

Ao acabar o  show, bem celebrada, ela teve os pertences furtados no Viaduto Santa Tereza, mas antes estas pessoas covardes bateram, chutaram, esfaquearam e machucaram física e emocionalmente a cantora, tendo uma multidão inerte à sua volta observando e as forças de segurança despreparadas para acolher uma vítima.

Segundo a cantora, a polícia não prestou socorro, não a levou ao hospital, e ainda pediu para ela chamar um carro por aplicativo. E ao chegar à unidade de saúde, ela soube que foi a quinta travesti agredida naquela noite. “Quem me bateu e quem assistiu, estas pessoas estão adoecidas”, desabafa a cantora.

No vídeo que gravou no dia seguinte, didática e calmamente ela explica o ocorrido e ressalta: as pessoas olhavam, ficaram assistindo como se fosse entretenimento e não fizeram nada, “como se eu não existisse”, afirma.

Uma historinha popular comum na Alemanha diz que se há dez pessoas numa mesa e um nazista chega e se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem 11 nazistas numa mesa. Este ditado nos lembra que não se pode tolerar o intolerável.

Eu fiquei pensando demais no vídeo da Coral. Ele me tirou do eixo e não foi  por solidariedade a ela, apenas. Nem por raiva das pessoas que olhavam e não reagiram.

Foi por entender que em momentos diversos eu sou, numa analogia necessária, um daqueles que fica parado observando, que não se incomoda, não diz nada. E, talvez, eu tenha sido um dos que “chutou”, em alguma ocasião, quem estava deitado no chão pedindo ajuda. 
E como o paralelo com o ditado alemão permite, ao ouvir calado, eu passo a ser um dos nazistas da mesa, um dos agressores da artista caída.

Eu li recentemente o livro “Pequeno manual antirracista”, da filósofa Djamila Ribeiro, que tem um conteúdo que nos instiga a boas reflexões. E ali ela fala claramente sobre quando rimos de uma piada preconceituosa, quando ficamos calados diante de uma fala racista, quando não nos “levantamos da mesa”, somos mais que cúmplices. Somos parte daquele pensamento.

O filósofo Henry Bugalho cita uma pesquisa recente que aponta que dois terços da geração chamada de Millennials, que nasceu entre aproximadamente entre 1980 a 2000, não sabem o que foi Auschwitz. “A gente não pode esquecer a barbárie, para que em nenhum momento isso jamais se repita”, afirma o filósofo.

Pois bem, além de não esquecer, nós temos que aprender muitas coisas, desconstruir tantas outras, para que a sociedade viva uma mudança em sua estrutura, o que não é fácil e não depende só de mim, mas que passa por mim.

Por isso eu decidi que a minha postura será de repúdio, de tentar não ouvir mais asneiras e ficar calado. E isso diz respeito a qualquer tipo de discriminação, como a feita por um vereador do sul do nosso país que disse que pessoas da cidade de Salvador, na Bahia, só querem saber de “tocar tambor”, num rompante que revela um ser limitado e ignorante no mínimo, dotado de burrice, como disse uma jornalista da Bahia, ou um mau-caráter.

Nós pedimos mudanças olhando para o umbigo. Não nos transportamos de forma alguma para o mais próximo possível da vida de algumas pessoas, numa vivência empática. 

A Djamila fala sobre “o lugar de fala”, tendo inclusive um livro com este nome. E “este lugar” é o ponto onde estamos posicionados, que nos permite ter uma perspectiva a partir dali que sabemos ser um olhar limitado. É por isto que o nosso ponto de vista deve levar em consideração os dos outros, desde que a gente mantenha a ética das relações, ou seja, que a gente não ofenda os nossos “combinados” para uma boa convivência social.

É preciso que a gente se eduque para pôr fim à barbárie.

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