As portas do Salão sempre estiveram abertas para aqueles que não eram aceitos em outros lugares. Pessoas com deficiência física e intelectual, pessoas com nanismo, adolescentes e jovens rebeldes. A população pobre encontrou ali mais do que um lugar para aprender uma profissão e ganhar dinheiro. Viu a oportunidade de se sentir aceita, compreendida e acolhida.
Além das oficinas de artesanato, o Salão do Encontro criou uma creche e uma escola para os filhos dos seus artesãos e as crianças pobres do bairro onde havia se instalado.
Décadas depois desse lindo trabalho ter iniciado suas atividades, fui convidado a conhecer e dar palestras no Salão do Encontro. Cheguei com os amigos do Senac, que me acompanhavam. Rômulo, responsável pelo local, me recebeu e foi me apresentando aquela obra imensa. Oficinas, auditório, salas de aula, crianças lendo debaixo de árvores, tendo aula numa cozinha e fazendo comida de verdade, colocando as mãos na massa para aprenderem a fazer artesanato, com barro, tinta. Um circo, onde a arte circense era ensinada, uma biblioteca que era de fato utilizada, uma cozinha com um refeitório imenso, em que mais de mil pessoas se alimentavam diariamente. Eu fiquei sentado próximo à janela que dava para a rua e pessoas que ali passavam pediam comida e eram prontamente atendidas.
“Dona Noemi, este é o Tio Flávio e ele veio dar uma palestra para os jovens”, disse o Rômulo. Ela me olhou, sorriu e disse: “podia vir mais vezes, né?”. E eu fui. Menos do que eu gostaria, mas o bastante para ficar encantado com o trabalho do Salão do Encontro, na cidade mineira de Betim.
Nos primeiros anos do Salão, a maior tristeza da Dona Noemi era ter que falar para 20 crianças e adolescentes, diariamente, que não conseguiria recebê-los lá, pois os espaços estavam todos ocupados e ela não poderia prometer mais nenhuma vaga. O que ela tinha conseguido colocar pra dentro, para trabalhar, estudar, aprender uma profissão, ela, sem dúvidas, assim o fez.
Um dia, assistindo a um vídeo que comemorava a segunda década de um projeto que já passou dos 50 anos em funcionamento, vi as pessoas chegando para trabalhar nas oficinas. Vinham a pé, pois o Salão era como o quintal da casa deles.
Uma cena comovente que integra hoje o Memorial Dona Noemi, recém-inaugurado para comemorar os 100 anos desta forte mulher, até então viva em carne e exemplos. Dona Noemi chegava num fusca, descia e saía cumprimentando as pessoas. Neste vídeo ela conta que uma criança bastante determinada chegou para ela e disse: “Dona, você tem que me dar um trabalho aqui”. Ela explicou que era impossível, que ela não tinha condições de admitir mais crianças. Nisso ela olhou para os pés dele e ele calçava um sapato com a boca completamente aberta. Foi aí que ela disse para o menino: “Olha, vai lá em cima e olha com a Luciana se tem um sapato que sirva em você”. E continua seu relato: “Ele ficou “em pezinho”, levantou o ombro e falou: Oh, dona, eu não estou te pedindo um sapato, estou te pedindo um trabalho”.
Nascida na cidade de Luz, em Minas Gerais, no dia 28 de março de 1924, Noemi Macedo Gontijo foi uma educadora, artesã, fundadora e presidente de honra do Salão do Encontro. Diplomada como professora, além de ter se especializado em Artes Industriais e Educação Artística pelo MEC. Mudou-se para Betim em 1956, onde dirigiu as Escolas Reunidas Sarah Kubitschek, além das classes anexas do Colégio Estadual de Betim, onde iniciou a implantação de oficinas de arte na Escola Especializada Nossa Senhora D’Assumpção, para pessoas com deficiência intelectual.
A educadora e artesã, junto com o frei Stanislau Bartold, fundou o Salão do Encontro para oferecer oportunidades às pessoas em situação de vulnerabilidade social e combater a pobreza e a miséria. A instituição é uma associação de direito privado, beneficente, fundada por Noemi Gontijo e pelo Frei Franciscano Stanislau Bartold, situada no bairro Angola, em Betim, sendo hoje o local que atende um maior número de pessoas através de programas de Educação Infantil e Complementar, assistência e desenvolvimento social e da Biblioteca Comunitária.
“Nossa proposta era ajudar quem não tinha nada. As primeiras crianças eram muito carentes, não tinham comida direito, roupa, nem acesso à educação. Durante toda a minha vida, isso me preocupou bastante. Essas crianças queriam e precisavam de mais, e eu queria dar mais do que alimentação a elas. Desejava que elas tivessem uma visão do que é a vida e que tivessem uma profissão”, afirmava Dona Noemi, que morreu na segunda-feira, 22 de julho de 2024, deixando uma imensa obra e um lindo legado. Ela dizia: “Eu nunca acho que terminou, porque se pensar em terminar, a vida terminou, então eu ainda quero lutar pelas pessoas, ainda. Muito, ainda”.