“Eu moro sozinho, sabe? E de vez em quando bate uma neurose, mas depois eu me recupero”, foi o que me disse um jovem que tem uma história de vida bem tumultuada. Aos 24 anos de idade pode-se dizer que ele já viveu experiências que eu nem de perto imagino como sejam.
Quando criança, com sete anos, foi tirado do convívio da mãe, já que ela foi diagnosticada com algum tipo de sofrimento mental e não conseguia cuidar dos nove filhos da maneira que deveria. Por negligência materna, como atestam as autoridades, alguns deles foram parar numa casa de acolhimento.
Do pai ele não sabe nem a cor da pele. Nunca teve contato e nem faz ideia de quem seja. A infância não foi fácil. Como os próprios filhos tinham que tomar conta da mãe, algumas lacunas ficaram naquilo que seria a vida saudável de uma criança.
Ainda adolescente ele e o irmão voltaram para o abrigo. Passado um tempinho o irmão permaneceu, mas ele fugiu. E fugiu de novo. Na cabeça daquele menino o que ele mais queria é estar perto da mãe, pois sabia que ela precisava de cuidados e ele não conseguiria ficar acomodado numa casa, acolhido, enquanto a mãe estava sozinha, sem amparo algum, precisando dele.
Era pensando em cuidar da mãe que ele sempre fugia das casas de acolhimento. Não sei se era a pior ou a melhor, mas era a sua mãe. Viver num abrigo, em meio a tantos outros garotos que não possuem nenhum laço entre si, também é um desafio. Há desafetos, mas há amizades.
Há educadores que se tornam referência e há outras que não fazem diferença. De alguns que os tenham marcado negativamente, poucos meninos que conheço e viveram num abrigo relatam.
O adolescente, com quase 16 anos, perdeu a mãe e foi parar nas ruas. Morou ali uns longos seis anos, debaixo de chuva, deitado sob marquises, nas calçadas, mendigando para viver. Carregava consigo apenas a mochila com algumas roupas.
“Nunca dormi em albergue porque lá tem que chegar cedo para enfrentar a fila e é muita gente. Acabando as vagas, ninguém mais entra, seja qual for o tamanho da fila”.
Ele relata que o medo é sempre companhia. Medo de não acordar, de ser roubado, de ser agredido, de não ter o que comer. O medo de ter que lutar para sobreviver, todos os dias, cansa, desgasta, consome.
Ele me mostra algumas tatuagens, feitas nesse período. Um dos braços, de maneira bem caseira, com um cifrão substituindo o “s”, carrega a frase: “amor $ó de mãe”. Mais tarde, tendo sido preso num Centro de Detenção Provisória, descobre que o significado ingênuo e amoroso da frase tem outra conotação na cadeia, pelo menos nos presídios de São Paulo, que pode significar pessoa molestada sexualmente, algo que não é o seu caso.
Na sua adolescência experimentou também o que ele chama de “Febem”, a Fundação Casa de São Paulo, que abriga adolescentes em conflito com a lei. Em um ambiente nada amistoso, aprende-se de tudo. E ensina-se também.
“Tráfico, roubo, receptação, invasão, furto”, tudo isso foi o que o levou, adolescente, a uma medida socioeducativa, conta ele sem demonstrar orgulho algum de tudo isso.
Da Fundação Casa para uma cadeia “de maior” não foi um passo longo. Ali ele vivia também abandonado, nunca teve visita de ninguém. Quando um preso, que era mais próximo a ele, recebia a esperada visita da família, costumava chamá-lo para que ele não ficasse “jogado” na cela, só imaginando o encontro de cada detento com quem os ama e não abandona.
“Nunca recebi uma carta que seja. E carta ali faz uma diferença que você não tem ideia”, diz ele.
Conheceu a prostituição. Ganhou dinheiro, mas também perdeu. Atualmente mora numa casinha que pode chamar de sua, tem um carro e junta dinheiro porque quer que seus dois filhos, ainda pequenos e que moram com a mãe deles na Bahia, possam estudar. Trabalha muito, é divertido, não reclama, nunca o vi lamentando sobre nada da sua vida. Tem ainda muita história para contar, mas soube tirar dessas vivências muita experiência para construir uma vida diferente.
“Hoje em dia eu estou correndo de problemas”, afirmou com convicção. Recentemente ele procurou a Defensoria Pública, aconselhado por um advogado voluntário, para saber se há alguma pendência com a justiça, pois quer pagar o que deve e fechar este ciclo para desfrutar de um novo momento, em que ele já se encontra, com mais consciência e muita maturidade.
Eu o vejo como um sobrevivente. Despeço-me dele e ele diz: “minha vida daria um livro, né?”. Eu pensei e respondi: “quem sabe?”
Palestrante, professor e criador do movimento vonluntário Tio Flávio Cultural