Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Estamos sozinhos?

Publicado em 11/02/2022 às 06:00.

Eu voltava cansado de um dia inteiro de ação voluntária numa unidade prisional em São Joaquim de Bicas. Peguei um ônibus em direção a Belo Horizonte e, como o trajeto é longo, resolvi olhar o celular, que fica desligado durante todo o tempo que permaneço na penitenciária. Depois de passar brevemente os olhos pelas notícias, já que estava um dia todo desligado das notícias externas, eu iria tirar uma soneca no longo trajeto.

Uma notícia, outra, exaltação ao nazismo de novo. Na minha cabeça veio o livro que li, esta semana ainda, chamado “A Noite”, contando sobre o adolescente que sobreviveu ao holocausto, tendo perdido parte da família nos campos de concentração.

O autor, Elie Wiesel, falecido em 2016, foi ganhador do Prêmio Nobel da Paz e era um grande defensor dos direitos humanos, deixando uma grande obra literária e uma vida dedicada à causa humana.

A história que o jovem Elie conta é bem pesada, pois é real, mas chamam a atenção os relatos da relação muito próxima com o pai, que antes dos campos era mais sério e distante.

Ao ir descrevendo sua experiência, nos faz pensar na nossa relação familiar, no quanto temos a aprender com os nossos pais e provoca, ainda, entender como em situações de extrema dor e desesperança, reflexões sobre nossas possíveis decisões.

Numa das partes do livro, um filho abandona seu pai quando andavam na neve, por quilômetros, indo de um campo para outro e fugindo da resistência Russa, que se aproximava cada vez mais. O jovem a quem Elie se refere estava exausto, como todos, e o pai não fluía na caminhada. Será que nesse tipo de contexto nós também não faríamos o mesmo? Afinal é uma guerra, ali estão envolvidas fome, sede, fadiga extrema.

Elie se cobrava, em algumas passagens do seu livro, sofrendo mentalmente, a sua postura frente a uma situação dessas lá, naquele momento. Será que ele teria coragem de abandonar o pai, numa caminhada de dias, sem descanso e nem refeições, sem direito a paradas para suas necessidades fisiológicas?

Em meio a estes meus devaneios, imaginem vocês que eu me deparo, no celular, nas minhas rápidas leituras antes de um cochilo no ônibus, com uma matéria que fala de abandono e esquecimento também. E isso não se deu na década de 1940, mas agora, numa região da Itália, em que a polícia foi chamada pelos vizinhos por causa de árvores que se mostravam com riscos de queda no jardim de uma idosa. Ao não conseguirem resposta na tentativa de contato, os policiais entraram na casa e descobriram que a idosa estava sentada numa cadeira, morta há mais de dois anos.

Marinella Beretta, de 70 anos, não tinha parentes próximos e, segundo os seus vizinhos, não era vista há mais de dois anos e meio. Todos acharam tal sumiço fosse em função da pandemia e, assim, não se preocuparam.

"O que aconteceu com Marinella Beretta (...), a solidão, o esquecimento, fere nossas consciências", reagiu em uma publicação no Facebook a ministra italiana da Família, Elena Bonetti. "Uma comunidade que quer ser unida tem o dever de lembrar a vida. Devemos parar de limitar nossos horizontes à esfera privada e restabelecer os laços que nos unem (...) Ninguém deve ser deixado sozinho", escreveu.

Quanta dor me invadiu ao ler esta notícia, ao ter acesso a esta história. Quanta dor eu senti imaginando a cena: a idosa já estava mumificada na cadeira e ninguém deu falta dela nesse tempo todo.

Já vimos robôs sendo levados às casas de repouso para fazerem companhia aos idosos institucionalizados, já tivemos notícia de familiares que “abandonaram” seus entes em função da própria correria que o dia a dia “impõe”, mas olha só aonde chegamos!

É hora de nos sentarmos para conversar com os avós, pais, tios, familiares e pessoas queridas sobre envelhecimento, longevidade, solidão, depressão, tristeza. Já é hora de tirar da listinha de tabus a conversa sobre a finitude e sobre a felicidade, para entendermos de vez o que é tudo isso, antes que chegue o momento em que fiquemos em casa lamentando, cantando a música “Epitáfio”, dos Titãs, como se fosse isso o viver: “devia ter amado mais, chorado mais, ter visto o sol nascer”.

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por