Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Eu não sei o que faria se perdesse meu filho

Publicado em 18/08/2023 às 06:00.

Embarquei naquele ônibus com destino a São Paulo num sábado de manhã. Com praticamente um passageiro por poltrona, fui sentado lá no fundo. Eu estava saindo de uma virose que me fazia visitar o banheiro a cada 15 minutos, e sentar-me por ali era uma forma segura para que eu pudesse cumprir aquelas quase nove horas de viagem.

Uma senhora, sentada à minha frente, parecia bem incomodada. Ela se mexia demais, o que acabava me desviando a atenção do livro que eu começava a ler. Preocupado com ela, não a interpelei sobre o que estava acontecendo, mas estava quase. Até que ela consegue completar a ligação que tentava fazer. Do outro lado, uma mulher a ouvia, numa chamada de áudio que deve ter durado uma hora e meia.

A passageira não escondia a sua dor. Falava um pouco mais alto, sem gritar, mas de modo que eu pudesse ouvir como se ela estivesse conversando comigo. Disse à outra pessoa que não sabia mais o que fazer com o filho adolescente. Aquela mãe falava com angústia, mas dava para ver que ela elaborava a história de maneira organizada, contando os fatos como eles aconteceram, numa serenidade surpreendente para aquela situação.

Seu filho, estudante, pelo que parecia do ensino médio, conheceu uma menina e se apaixonou. Ele era mais calado, mais na dele e essa menina fez bem ao jovem. Só que ele é excessivamente ciumento e cobrava muito da menina que, na avaliação daquela senhora, não precisava aguentar tudo aquilo. Não precisava e nem aguentou. A namorada disse ao menino que aquele relacionamento não estava sendo saudável mais e terminou o namoro. O menino não aceitou, falou que ia mudar, que era para a menina ajudá-lo, que ele queria uma nova chance. Ela, convicta, disse que seria melhor que cada um tocasse a sua vida e ratificou o temido ponto final no relacionamento.

Esse menino, segundo a mãe, deixou de ir à escola, por vergonha de ter sido abandonado e por dor, que ele não conseguia suportar. Fechou-se no quarto e não falava com ninguém. Começou com uma história estranha, que a vida não tinha sentido, que ele queria morrer e que a dor era tanta que era melhor acabar com aquilo. A mãe começou a se preocupar, mas achou que era uma fase e que, como todas elas, passaria.

Até que a notícia vem: o filho tentou o autoextermínio. A mãe, acionada no trabalho, foi como um jato, pois os vizinhos viram aquela movimentação na casa e entraram a tempo de salvá-lo. Ao receber a notícia a mãe chorava. Só tinha dinheiro para o ônibus e as amigas ajudaram para que ela pagasse um carro por aplicativo.

- “O que você foi fazer? Você tem família, tem pessoas que te amam. Você vai esquecer essa menina e aprender com essa dor”, dizia aquela mãe em prantos ao filho medicado.

Ao telefone, ela explicava à pessoa que a ouvia: “esses adolescentes hoje estão assim, fulana. Quando, na minha vida, que eu pensei em morte ao terminar um namoro? Terminava um, sofria e já engatava em outro. Mas essa geração não consegue lidar com frustração, fulana”, dizia a mãe numa análise do fato.

Eu, com o livro aberto e sem ter lido uma linha, estava sentado na poltrona de trás acompanhando aquele relato. A mãe disse que ia colocá-lo num curso que ele queria fazer. Não tinha dinheiro, mas ia “deixar de comer”, afirmação metafórica para representar que faria de tudo para ele fazer algo que ele queria.

- “Eu não sei o que faria se perdesse meu filho”, repetia aquela mãe.

O marido da mãe, padrasto do menino, dizia que ela o mimava demais. E ela respondia: “ciclano, ele está doente. Isso não é normal, ele tem que se tratar. Tem que aceitar”. O homem achava que era frescura de adolescente.

Muitos de nós tivemos problemas diversos na vida e nem todo mundo reagiu como aquele adolescente. Não preciso sustentar a ideia de que não há um indivíduo igual ao outro. Por isso é que somos chamados de indivíduos, por sermos singulares. Mas, uma coisa que aprendi é que não há métrica para dor. Alguém, com problema semelhante, não tem reações similares. Somos diferentes. Tem uma fala interessante no livro “Se adaptar”, da Clara Dupont-Monod, que é uma citação de Benoit Peeters e François Schuiten em “A menina inclinada”: “o que quer dizer ‘normal’? Minha mãe é normal, meu irmão é normal. Eu não tenho a mínima vontade de ser como eles.”

Há pessoas que têm as suas feridas e elas cicatrizam porque há por perto quem ajude a cuidar. Há outros que não têm, e quando outra dor chega, não acha espaço e se aloja em cima de velhas feridas. Uma hora este conjunto todo explode.

Aquela mãe não desceu em nenhuma das duas paradas. Eu tive tanta vontade de abraçá-la, mas sei que é preciso ao menos uma abertura para que isso ocorra. Eu desci no primeiro restaurante do caminho, voltei, lancei o olhar para aquela mãe, mas ela tinha deixado o seu corpo recostado naquela poltrona: afundada em pensamentos, ela estava longe.

Eu não imagino o que são nove horas de viagem num ônibus carregando uma dor tão grande. Eu não imagino a dor de uma mãe que viu seu filho tentar tirar a própria vida. Em momento algum da conversa ao telefone ela se culpou. Ela era sábia demais para entender que isso não os ajudaria em nada.

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