Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Fazer o quê?

15/07/2021 às 14:55.
Atualizado em 05/12/2021 às 05:25

Nem bem o carro parou próximo ao meio-fio, numa das comunidades da cidade de Frutal-MG, e já foram se aproximando várias crianças e adolescentes, além de algumas das suas mães, que ficam com sorrisos estampados de alegria e euforia.

A equipe de voluntários da Apac (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) da cidade desce do carro e começa a entregar os marmitex com as refeições produzidas dentro da unidade prisional, pelos próprios recuperandos, nome que se dá aos indivíduos privados de liberdade que ali cumprem sua pena.

Paula, a gestora da Apac, coordena a ação e vai também distribuindo aquele recipiente de isopor, pesado e muito bem fechado, para manter a comida quentinha. Chega a vez de uma menininha receber: o marmitex parecia maior que ela, mas não tão grande quanto a sua empolgação em carregar aquele peso.

Mas não é só entregar a comida. É olhar de maneira afetuosa, é perguntar se aceita, é restituir, mesmo que momentaneamente, a dignidade da escolha, da gratidão, da companhia amistosa.

Em meio a essa conversa, a gerente da Apac pergunta quantas crianças são na casa daquela criança toda exitosa com a comida nas duas mãos, ao que ela responde que são sete filhos. A Paula percebe então que aquela única marmita, por mais caprichada que seja, não daria para todos.

- Mas isso será pouco para todos vocês, né?

A criança responde: não, a gente divide.

Os recuperandos daquela Apac preparam o alimento como se fosse para eles, mas não vivenciam aquela alegria da entrega. Para resolver isso, eles veem as fotos, que demostram de alguma forma aquilo que eles, da cozinha, agora conseguem produzir lá fora.

Além de Frutal, outras Apacs já estavam desenvolvendo trabalhos sociais, com a produção de máscaras, alimentação, roupas de frio para serem doados para famílias em vulnerabilidade social.

Na Apac de Nova Lima-MG, em que cada recuperando recebe diariamente dois pães para a sua própria alimentação, houve uma reunião por iniciativa dos próprios indivíduos privados de liberdade, com apoio da direção, e cada um, de acordo com sua consciência e possibilidade, passou a doar o pãozinho para que fosse entregue às pessoas em situação de rua e famílias em vulnerabilidade. Além disso, estão produzindo agasalhos que são distribuídos pela cidade nessas noites mineiras de frio.

Iniciativas como a da Apac de Paracatu-MG, que procurou ONGs e movimentos sociais para ajudarem na identificação do público a ser beneficiado, além de envolver a sociedade civil nesse processo de reponsabilidade social, conseguem trabalhar um espírito de pertencimento e cidadania junto às pessoas ainda em cumprimento de pena.

Agora, com o apoio da União Europeia e da Avsi Brasil, cerca de 17 Apacs, de três Estados brasileiros, receberão uma ajuda de custo para a produção de marmitex que serão distribuídos nas cidades onde estão instaladas. O envolvimento de mais recuperandos e voluntários será amplificado e ainda mais famílias serão atendidas.

Vale muito ressaltar que em Frutal, única cidade em que há uma Apac Juvenil, os adolescentes ajudam na produção e na entrega dos marmitex, presenciando aquela alegria e gratidão de quem recebe.

E é assim mesmo que a sociedade, se unindo vai, aos poucos, construindo alternativas sociais, sejam de assistência, necessárias para manter o indivíduo vivo e saudável, sejam de um impacto prolongado, trabalhando a educação e o desenvolvimento pessoal e profissional, mas, sobretudo, humano. Porém, o que temos descoberto é que dá para fazer algo diferenciado sozinho, mas em união e permanente troca, aprendemos e crescemos muito mais.

Muita gente e instituições pensam que são “pequenas demais” para fazerem algo de impacto, mas logo descobrem que é ao começar, com os desafios, erros e acertos peculiares de cada processo, é que a gente vai descobrindo os porquês, como, com quem e o que fazer, pois a partir daí outros mundos, que estavam ao nosso lado, quase que invisíveis, vão se descortinando.

Sempre gosto de citar Cervantes, na conversa do Don Quixote com o Sancho, seu fiel companheiro de jornada, quando ele diz: “mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia, é justiça”.

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