Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Fui amparado pela solidariedade

Publicado em 11/08/2023 às 06:00.

Um grupo de professores me convidou para fazer um doutorado fora do país, pois a faculdade na qual trabalhávamos havia firmado um convênio com uma agência internacional e pagaria uma parte das mensalidades. Os custos de passagem, hospedagem, alimentação e a maior parcela do valor dos estudos seria por minha conta. Como era uma oferta tentadora, fiquei inclinado a aceitar.

Pedi mais informações sobre qual era o país, a língua local e quanto ficaria a parte que a mim caberia pagar. O acordo entre universidades era amplo, mas no nosso caso, teríamos que cursar o doutorado em Pedagogia numa universidade na cidade de Matanzas, distante cerca de duas horas de Havana, a capital cubana.

Aceitei e fui viver esta experiência, que me foi bem mais leve porque as professoras que viajaram comigo me adotaram neste período. Elas me ensinavam espanhol, resolviam os problemas mais alarmantes e me deixavam com os de baixo impacto. Lá nós estávamos como estudantes, então era um tipo neutro de presença na ilha, pois não éramos turistas e nem residentes.

Muitas coisas nos eram limitadas, inclusive cruzar algumas fronteiras ou utilizar os carros dos moradores. Espera, eu explico: como os carros foram deixados por seus antigos donos, bem como algumas casas, à época da revolução, entre 1953 e 1959, eles eram de propriedade do estado. Ao transitarem pelas ruas, tendo vagas, os motoristas com a concessão dos carros paravam nos pontos de ônibus e davam carona para quem ali estava, mas só podia desfrutar desse auxílio quem fosse morador. Isso acontecia nos caminhões também.

Assim que cheguei fui levado a um quarto de hotel que dividiria por 30 dias com um professor brasileiro. O atendente cubano entregou toalhas, sabonetes e um rolo de papel higiênico para cada, alertando que toda semana eles renovariam aquele item de primeira necessidade. Guardei-o em uma prateleira em cima do vaso sanitário e fui dormir. Tínhamos que acordar cedo no dia seguinte, já que o governo fechava a água da cidade às 8 horas da manhã e reabria às 18 horas. Inadvertidamente, derrubo o papel higiênico no vaso sanitário, que boia olhando para mim como que se sorrindo de deboche. Era o único para toda a semana e no primeiro dia já me acontece isso.

Não tem como negociar com o hotel. Não sou turista, então não tenho direito à compra e o estoque era regulado. Os amigos brasileiros me salvaram doando alguns poucos metros do seu próprio rolo.

Comecei a frequentar as aulas do doutorado em Pedagogia, mas era bem distante de tudo que eu pretendia. Queria usar este conhecimento voltado para o desenvolvimento organizacional, mas o foco deles era muito educacional. As teorias da educação são interessantes, mas eu queria algo que me brilhasse os olhos. Percorri os departamentos da faculdade procurando algum programa de doutoramento que me agradasse e encontrei em Economia. Professores cubanos, com vários pós-doutorados, compunham uma Rede Latino-americana de Marketing de Cidades e se ofereceram para serem os meus orientadores.

Após alguns dias eu teria que apresentar um projeto de estudos que precisava ser validado por uma banca. Fui para a sala de aula indicada, onde cinco professores pediram que eu aguardasse a chegada dos convidados. Já estava tenso com cinco pessoas e ainda teria mais gente, pensava inquieto. Dez minutos depois entraram umas vinte pessoas e sentaram-se nas cadeiras dos alunos. Fiquei imaginando quem seriam aquelas pessoas, se eles saem atrás de gente para assistir a defesa. Eram todos com roupas bem simples, pareciam trabalhadores braçais daquela universidade, na minha ignorância e julgamento precipitado – e porque não dizer preconceituoso.

Apresentei minha defesa e a palavra ficou aberta. Um a um daqueles presentes, todos professores-doutores, foi me “detonando”, com uma simpatia e educação sem igual. Um deles pegou a palavra e se demorou mais. Ele vestia uma calça jeans bem velha e puída. Ficou de pé, me cumprimentou, assim como todos os outros, desconstruiu minha defesa com muita elegância, elogiou a minha ideia e me apontou caminhos. Ao final do evento, aquele respeitado chefe de departamento, com vários cursos de pós-doutorado no exterior, veio me parabenizar.

Humildade não brota na gente de um dia para o outro, ela é fruto da prática, mas ali eu tive uma aula. Aprendi muito com aqueles professores, que não tinham permissão para entrar nos hotéis, onde os únicos cubanos que entravam eram os que ali trabalhavam. Então, para que eu não perdesse tempo, ia para o lado de fora, na escadaria, onde aos sábados e domingos o meu orientador discutia comigo o meu novo tema.

Convidado por alguns professores a ir jantar em suas casas, víamos que muitos usavam cortinas como divisórias. Uma vida bem modesta, dura, mas que faziam questão de nos receber para dividir a comida que tinham.

Um dia, passeando por Havana, vi que nas praças públicas os artesãos montavam suas barracas para venderem as suas artes. Enquanto não atendiam clientes, ensinavam crianças e idosos o seu ofício, a sua arte.

Vivi momentos de aperto distante da minha família. Quis desistir, mas as pessoas que me cercavam foram essenciais para que eu cumprisse aquele ciclo de aprendizado. A eles fica registrada a minha eterna gratidão.

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por